A adopção e a co-adopção como direito da criança

Achei que poderia justificar-se a publicação do texto que preparei para intervir na Escola de Direito da Universidade do Minho no passado dia 30 de Maio.

Foi uma honra para mim estar de novo na Universidade do Minho e sinto-me privilegiada por ter sido convidada para falar numa conferência organizada pelo Centro Interdisciplinar em Direitos Humanos a que preside o Prof. Pedro Bacelar de Vasconcelos, por quem tenho uma profunda admiração.

Também felicito a Prof. Cristina Dias pela organização e pelo cuidado constante. Obrigada a ambos! O tema é apaixonante, como tudo o que respeita à adopção.

Achei que numa Faculdade de Direito, a audiência já saberia, ou estaria em condições de saber o que diz a lei, pelo que numa matéria, que continua a emocionar e que será sempre geradora de polémica, enquanto houver humanidade, pensei ser melhor falar de casos e de outros aspectos menos mencionados. Neste assunto da adopção, estou convicta que não haverá tão cedo unanimidade,  porque embora haja sempre quem diga que há coisas indiscutíveis, haverá outros que não se conformam e decidem discuti-las…

A minha contribuição será pois para salientar alguns aspectos, com base na minha experiência pessoal e profissional.

E depois, num ano em que se celebra o 25º aniversário da Convenção, sendo uma temática tão actual, achei que faria sentido um pouco de história, sendo certo que não são apenas os factos que a fazem, mas também as ideias capazes de mudar a sucessão das coisas.

Considerei que estando eu numa mesa com um distinto Juiz de Família, o meu amigo António José Fialho, que também tem prática semelhante à minha e talvez falasse um pouco do enquadramento legal, fazia sentido falar sobretudo dos aspectos psico-sociológicos e históricos que em meu entender ajudarão talvez a compreender as múltiplas resistências que na prática ainda encontramos quando falamos na constituição da família adoptiva.

Assim, numa sessão em que se debateu a co-adopção e a adopção conjunta por casais do mesmo sexo, lembrei que muitos Estados do mundo não reconhecem a adopção, desde logo, por exemplo, os Países árabes onde vigora a Kafala, semelhante ao nosso instituto da tutela.

A criança, embora viva integrada na família, não adquire a qualidade de filho, com todas as consequências que daí resultam. Curiosamente, numa comunicação que fez na Universidade Católica Souhayr Belhassen, activista de Direitos Humanos e que ganhou há dois anos o Prémio Norte-Sul, uma das preocupações que manifestou foi justamente com o facto de o Governo Islamista da sua Tunísia poder revogar a Lei da adopção, por entender que isso representaria um retrocesso.

Sabemos disso em Portugal, pois entre nós foi proibida a adopção durante quase um século, o tempo em que vigorou o Código de Seabra, de 1867 a 1966.

Salientei que mesmo depois da entrada em vigor do Código Civil que ainda vigora, e que reintroduziu a adopção no nosso sistema jurídico, só podiam ser adoptados os filhos de pais incógnitos ou falecidos. Isto significa que, por um lado, não era admissível a entrega da criança para adopção, através do consentimento dos pais e as crianças abandonadas, separadas dos pais por maus tratos ou por abuso sexual, haveriam de permanecer nos asilos, ou na melhor das hipóteses, seriam entregues a famílias abastadas, onde “serviam”.

Ainda hoje, há depoimentos desses, de velhos que contam não terem tido família e que foram servir em casas ricas, porque a adopção como a conhecemos hoje só viria dois anos depois da nossa Constituição da República, em Abril de 1978.

É necessário dizer que foi por essa altura que Kemp, um pediatra americano, publicou o seu livro da “Criança espancada” e a causa da protecção da criança ganhou cada vez mais adeptos de tal forma que o ano de 1979 foi declarado pela ONU, o Ano Internacional da Criança.

Creio que foi determinante, porque esse ano foi um marco na nova perspectiva da criança, até aí muito objetivada, como verdadeiro sujeito, que a Convenção, aprovada pela ONU dez anos mais tarde, viria consagrar.

O Prof. Reis Monteiro costuma chamar-lhe a “Magna Carta da Criança”, porque efectivamente além dos velhos direitos à vida, à integridade física, veio mencionar um conjunto de outros não menos relevantes, os chamados direitos sociais, económicos e culturais, como o direito à educação, sem esquecer também o direito ao lazer e a actividades culturais e os direitos à palavra, audição e participação, como o direito à livre expressão do pensamento e de reunião e associação.

Mas talvez o que mais nos impressione sejam as expressões inovadoras do preâmbulo, que fala no direito a um ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão. É uma expressão muito calorosa, pioneira na forma e na substância, cheia de calor e de afecto, a sugerir legislação preocupada não apenas com a ausência de violência, mas também com o bem-estar psico-social.

Têm sido difíceis de concretizar estes novos direitos. Por um lado, ainda não se valoriza a voz da criança, a sua opinião, a sua vontade e por outro, não tem sido devidamente acautelado o seu direito ao ambiente acolhedor e feliz sugerido pela ideia do “ambiente familiar de amor e compreensão”.

Na verdade, entre nós a cultura institucionalizadora, excessivamente endeusada devido ao não reconhecimento da adopção como fonte de relações jurídicas familiares, fez com que essas casas onde os meninos e as meninas pobres eram depositados “até aprenderem uma profissão” ainda hoje persista.

Sabemos todos que muitos não aprendiam nada e fugiam logo que lhes era possível. Continuam a fugir, aliás.

Cá, como noutros Países da Europa, muitos dos meninos desaparecidos e assinalou-se este mês o seu dia, são adolescentes em fuga de instituições de acolhimento.

Portugal é dos Países que apresenta uma mais elevada taxa de crianças institucionalizadas, de entre as que foram retiradas aos pais por razões de perigo. São mais de oito mil. Num País com problemas demográficos tão sérios, é um número demasiado excessivo.

Certo é que, quarenta anos depois do 25 de Abril, numa altura em que pensávamos inteiramente adquirido o entendimento acerca da importância dos afectos na vida dos seres humanos, as nossas leis, que nos dizem serem muito boas, continuam a ser indiferentes a esta realidade, visto que não promovem de forma eficaz, a desinstitucionalização.

O que nos leva a uma questão que me é cara há muitos anos, e que expus pela primeira vez justamente em Braga, em 1998, na sequência do homicídio de uma criança em Coimbra, o Edgar, que morreu em consequência das graves lesões que lhe foram causadas pela mãe, que não o tinha criado.

Mais mortes ocorreram. Quando era Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, houve a morte da Vanessa, cujo cadáver apareceu a boiar no Rio Douro,  cheguei a fazer uma carta-circular no sentido de dever ser sempre instaurado processo de promoção e protecção nestes casos, em que havia uma situação fáctica em que inexistia exercício das responsabilidades parentais e se verificava simultaneamente o estabelecimento de uma relação afectiva  securizante e privilegiada com terceiros, que tinham cuidado e acolhido a criança, durante a maior parte da sua vida.

Esta é uma realidade importantíssima que aconselha a que seja expressamente reconhecida na lei a necessidade de relações afectivas estruturantes na vida de uma criança.

Mais, o desenvolvimento das neuro-ciências, com as novíssimas descobertas da importância das emoções e dos sentimentos na vida das pessoas, que a psicologia da infância já salientava, mas que mais recentemente Boris Cyrulnik e António Damásio com ainda maior ênfase apontam para a necessidade de evitar o mais possível as rupturas das crianças com as suas figuras de referência.

O Instituto de Apoio à Criança, cujos fundadores foram verdadeiros percussores nestas matérias, o Dr. João dos Santos, o Prof. Emílio Salgueiro, tem vindo a defender a importância da consagração legal expressa desse direito à preservação das relações psicológicas profundas, que quando ignorado, tanto sofrimento tem causado a tantas crianças.

Por outro lado, como já referi, outra das reivindicações que devemos em meu entender transformar em exigência é a desinstitucionalização.

Temos apenas 5% de crianças em acolhimento familiar, segundo estudos apresentados recentemente pela Associação Mundos de Vida, que tem feito uma Campanha notável para mudar estes números.

Finalmente, o investimento na Adopção internacional é muito desejável e justo. Justo para os casais, mas sobretudo para as crianças.

Ora bem, é neste contexto que temos de situar as reservas que todos ouvimos à adopção, à co-adopção, à adopção por casais do mesmo sexo.

Na minha experiência profissional, acompanhei casos de crianças rejeitadas, abandonadas, gravemente maltratadas, seriamente mutiladas e abusadas sexualmente. A adopção foi em muitos desses casos uma solução muito feliz. Porquê? Porque havia uma ruptura dos laços psicológicos com a família biológica, tinha havido uma substituição das figuras de referência e tinha sido construída uma relação semelhante à da filiação com as famílias requerentes da adopção. E também tive casos em que mães lésbicas deram à luz crianças por inseminação artificial. Essas mulheres casaram entretanto e as suas crianças vêem o casal homossexual como suas mães. Havendo uma relação semelhante à da filiação, creio que só o preconceito pode ditar as reservas.

Claro que se defendo, como o Instituto de Apoio à Criança, a consagração do direito da criança à preservação das suas relações psicológicas profundas, é muito mais fácil para mim este raciocínio. Não há nenhum salto, há apenas o percurso natural de um reconhecimento fundado na realidade e nos conhecimentos científicos que hoje são pacíficos no que respeita ao bem-estar da criança, como ser autónomo e sujeito de direitos.

As crianças têm direito a viver sem sofrimento e num ambiente familiar.

Mas há sempre quem entenda ter o direito de decidir sobre os filhos dos outros. Tivémos primeiros os escravos. Roubavam as filhas às mães para as violar e os filhos açoitavam-nos na árvore. Tivémos as histórias tristes das damas inglesas que na Austrália se arrogavam o direito de retirar os filhos aos aborígenes, não admitindo porém que se misturassem com os seus. Soubémos recentemente do drama das mulheres espanholas republicanas a quem forma arrancados os filhos durante a ditadura franquista e no ano passado tivémos o filme Philomena que mostra a tragédia das mães adolescentes da Irlanda, a quem as instituições da Igreja católica negavam o direito de criar os seus filhos, que morriam por falta de cuidados e assistência ou eram entregues a casais ricos da América.

Sinceramente, num mundo tão cruel para as crianças em tantos lugares do mundo, não vejo que tudo isto tenha causado um incómodo pelo menos semelhante àquele que está a causar a possibilidade da adopção por casais homossexuais. Nos Países em que essa possibilidade existe, os filhos têm declarado publicamente que foram criados e educados com afecto e que isso é que é relevante.

Nos casos que tive no Tribunal de Menores em que crianças em perigo foram confiadas a familiares que viviam em situação de conjugalidade ou de intimidade com parceiros homossexuais, posso dizer-vos que as crianças se apresentavam todas muito saudáveis emocionalmente e a  nível de estabilidade psíquica.

Outra questão que mencionei acima: Continuamos a saber que há crianças escravas por esse mundo fora, vendidas pela família por poucos dólares. Que felizes seriam se em Países como Portugal pudessem deixar de ser invisíveis, se pudessem ter uma família, se pudessem brincar e ir à escola!

Mas há sempre obstáculos e mais obstáculos para adoptar crianças estrangeiras. Vemos quer na Europa, quer nos Estados Unidos crianças africanas e asiáticas adoptadas. Entre nós, é raro, difícil. Os candidatos desistem com tantas burocracias.

Uma coisa é certa: no nosso País existem estas famílias. Existem crianças integradas no seio destas famílias e quem as conhece testemunha que são famílias estáveis, estruturadas, afectuosas.

É por isso que não consigo acreditar que seja pelo bem-estar das crianças que clamam as pessoas que se declaram contra a adopção apenas porque os requerentes têm uma orientação sexual diferente da mais comum, sobretudo quando falamos em co-adopção, em que já existe uma relação afectiva prévia.

O que está em causa na adopção é saber se entre a criança e o adoptante existe uma relação semelhante à da filiação. Claro que nos reportamos à da filiação amiga, protectora, cheia de afecto, àquela que seja uma referência estruturante para a criança. Se essa for a situação, creio que será sempre vantajoso para a criança ter dois pais ou duas mães, em vez de não ter nenhum ou de ter só um.

Lembro-me de um casal de lésbicas em que surgiu cancro da mama a uma das mães, que falou do seu caso, e logo se ergueram vozes dizendo que havia outras formas de evitar que, em caso de morte, a criança fosse retirada à cônjuge sobreviva. Claro que existem formas de as crianças não serem retiradas. Claro que pode haver acções propostas em Tribunal e em princípio a criança ficará confiada à sua mãe afectiva.

Mas não deveríamos ter o direito de sujeitar a cônjuge sobreviva e a própria criança a um processo, em que vai ter de demonstrar que a criança está bem integrada, que está bem tratada e outras coisas óbvias, sendo certo que não é para tratar do óbvio que existem os Tribunais.

Nestes casos, deveria estar tudo previsto, tranquilamente ponderado e decidido para que à tragédia da morte não se associe a ansiedade que qualquer processo sobre atribuição de guarda, comporta.

Em suma, se o factor determinante é a relação e se a reconhecermos, teremos de atribuir-lhe relevância jurídica para efeito da co-adopção.

Somos a par da Rússia, Roménia, Bulgária e Ucrânia, um dos 5 Países do Conselho da Europa que não a permite o que não é um bom indício, para mais após a posição assumida pelo Comissário para os Direitos Humanos, que escreveu uma carta à Assembleia da República chamando a atenção para o facto, na sequência de uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que condenou a Áustria por considerar discriminatório a impossibilidade de adopção pelo cônjuge homossexual. A Áustria alterou a sua legislação na sequência da condenação e estou convencida que a solução no nosso País vai acabar por ser essa.

A nossa Constituição estatui a não-discriminação, designadamente em razão da orientação sexual, pelo que não me parece coerente a proibição. Acresce que a nossa Lei Fundamental refere que a República Portuguesa se funda na dignidade da pessoa Humana e por isso creio que o nosso Estado de Direito não pode continuar a negar a constituição da família adoptiva a pessoas com base na sua orientação sexual.

É por tudo isto, que é minha convicção que a situação vai ser alterada muito em breve.

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