A Convenção sobre os Direitos da Criança

Decidi falar sobre o 25º aniversário da Convenção em pelo menos um dos artigos que escrevesse para as diversas entidades que me dirigem convites para o efeito, porque são precisos pretextos para falar de direitos que falta cumprir. Acabei por escrever já quatro artigos sobre a Convenção da Criança.

Faltava, porém uma menção nesta minha página. A Convenção é o tratado internacional que logrou conseguir quase a universalidade das ratificações, o que é notável e demonstra um enorme consenso sobre um conjunto vasto de matérias. Mas não nos iludamos. Com as crianças é sempre assim: só aparentemente a unanimidade corresponde a pensamento unívoco, existindo, na realidade, divergências de fundo, que se escondem deliberadamente para perpetuar a atitude de dominação em que se tem traduzido a relação de supremacia do adulto para com a criança, e que durante séculos tem conduzido a violências de toda a espécie…

Mas hoje não vou falar da Síria, nem da República Centro-Africana, do Congo, ou do Paquistão. Neste artigo, não vou falar dessas violências, pois vemos que há outro tipo de direitos por concretizar, e que não podem ser ignorados, sob pena de não honrarmos os compromissos que assumimos com as crianças.

Na verdade, nos Estados Unidos e em toda a Europa há direitos que bem poderiam merecer mais atenção e que com pouco esforço poderemos ver aplicadas políticas que facilitem o seu exercício.

Os Direitos fundamentais à vida, à integridade física, à saúde, à segurança, à proteção, já eram reconhecidos. Mas a Convenção, a quem Reis Monteiro costuma chamar a Magna Carta da Criança,  veio dar uma nova dimensão aos Direitos, na medida em que preconiza uma perspectiva holística da criança, conferindo-lhe um estatuto de mais dignidade. Houve a preocupação de condenar todo o tipo de violência, ao mesmo tempo que se mencionou o direito à recuperação psicológica das vítimas.

Consagraram-se também direitos sociais, económicos e culturais, valorizou-se o direito à educação, e à cultura, consagrou-se o direito à privacidade, devendo porém salientar-se o direito à participação, que será talvez o mais inovador.

É justamente aqui, no âmbito do conjunto de direitos ligados à liberdade de pensamento, que considero estar a ser muito difícil cumprir. Na verdade, apesar de alguns esforços para que as crianças possam gozar todos estes direitos novos de que são titulares, há neste âmbito manifestamente um défice: O Direito à Palavra, já o tenho dito com alguma frequência, é relevantíssimo, porquanto todos os outros podem ser comprometidos, se este não for garantido. Se não for ouvida, ou se não lhe for dado crédito, menoriza-se a criança, não se assume como verdadeiro sujeito de direito, acabando por ser mais uma vez redutora a perspectiva subjacente, que coisifica a criança como ser sem vontade própria e sem direito a influenciar as decisões que lhe dizem respeito. Ora, de tal forma se tem valorizado ultimamente este direito que foi entendido necessário um Protocolo à Convenção só para este efeito, para que as crianças possam comunicar violações dos direitos, e que entra em vigor no nosso País já no próximo mês de Abril.

Simbólico é que, no mês em que passam 40 anos daquele Abril que restituiu a liberdade aos Portugueses, às nossas crianças seja dada a possiblidade de dirigirem queixas ao Comité dos Direitos da Criança sobre eventuais violações dos seus direitos. Creio que será um bom presságio…

Finalmente, outro défice que tenho de assinalar e que este ano, em que passam 20 anos sobre o Ano Internacional da Família,  é particularmente importante lembrar e que é o Direito a uma Família. A propósito da lei que foi aprovada e depois desaprovada da Co-adopção, falou-se das crianças que por terem apenas uma menção de maternidade ou de paternidade no registo de nascimento, deveriam merecer uma atenção especial. Lamento muito que não tenha havido coragem para permitir a estas crianças o reconhecimento legal de uma parentalidade afectiva que elas já sentem. O Instituto de Apoio à Criança saudou a aprovação da Lei, em Maio de 2013, por considerar que as crianças ficavam mais protegidas,  e ainda porque tem vindo a defender a consagração do direito da criança à preservação das suas relações afectivas profundas, o que sucede, afinal na co-adopção. Ao recusar este direito às crianças, Portugal só fica neste aspecto, na companhia da Rússia, da Roménia e da Ucrânia.

Mas hoje quero saudar em especial a Campanha da Associação “Mundos de Vida”, pelo Acolhimento familiar. É uma Campanha que merece felicitações e que nos interpela de uma forma veemente. Há ainda demasiadas crianças a viver em instituições. Num País pequeno como o nosso, e que tem tão poucas crianças, mais de 8000 crianças internadas, é um excesso que não pode deixar de nos incomodar.

Deveríamos, portanto aproveitar este ano para fazer campanhas pela desinstitucionalização das nossas crianças. Procurar integrar a criança separada de seus pais numa família, privilegiando, sempre que possível a  adopção, com rigor e respeito pelos direitos dos pais, obviamente, mas, nos casos em que fosse inviável, investir no acolhimento familiar.  É, na verdade, um instituto pouco usado entre nós, sendo muito elogiado noutros Países como uma forma feliz de dar uma família a uma criança. A nossa vizinha Espanha, por exemplo tem feito um esforço nos últimos anos  e tem conseguido alterar a sua percentagem institucional, o que é louvável.

O IAC e em especial a sua Presidente Manuela Ramalho Eanes sempre se preocupou com esta realidade. Lembro-me de ter sido convidada para uma reunião do Conselho Técnico-Jurídico em 2005 em que esteve presente também o Cons. Armando Leandro e a Prof. Maria do Rosário Carneiro, em que se procurava propor justamente que houvesse um incentivo ao acolhimento familiar, com apoio e formação adequada das famílias para que as crianças, em particular as separadas de seus pais, vissem concretizado o seu direito a “crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade amor e compreensão”.

Esta frase, retirada do Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança não pode ser apenas uma expressão sem correspondência com a realidade, porque como diz Gabriela Mistral, “o futuro da Criança é hoje”, sendo certo que se não construirmos um presente sólido e feliz hoje, não teremos o futuro de mais justiça e dignidade, que todos desejamos.

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