Dia dos Irmãos

Sempre que possível, não separar irmãos com relação de afecto significativa: um princípio que jamais devemos esquecer.

Há dias passou nas redes sociais um vídeo comovente que mostrava a história de dois irmãos cujos pais não cuidavam deles e antes se entregavam a um exercício doentio de discussões permanentes que num crescendo terminavam sempre em agressões mútuas. Quem cuidava do bébé era a menina, que, apesar de não aparentar ter mais de quatro anos, lhe matava a fome e a sede e o entretinha, já que ambos os pais estavam enredados numa teia de violência. Para salvaguardar a sua segurança, as crianças acabaram por ser retiradas, mas foram separadas e viu-se então a enorme tristeza da menina, sem que nada a conseguisse consolar. Felizmente, a criança veio a ser entregue a uma mulher sensível que percebeu que apenas seria possível a recuperação psicológica desta criança se lhe fosse dada a alegria de reunificação com o seu pequeno irmão….

Lembrei-me de imediato de um caso muito idêntico que tive há quase trinta anos, em Almada.

Dois irmãos haviam sido deixados pela mãe em casa de uma vizinha. Ele com ano e meio, ela com sete meses, a mãe desaparecera há uns dias sem dar notícias. Na altura, na área da comarca, não havia centros de acolhimento, nem famílias de acolhimento disponíveis, e a Segurança Social optou por colocar as crianças em famílias candidatas à adopção. Mas tinha de ser no próprio dia e as famílias que foi possível contactar, lembremo-nos que não havia telemóveis, colocaram dificuldades pelo facto de terem de conversar com o respectivo cônjuge para ficarem com os dois irmãos. Separaram-nos, portanto. Meu Deus, que erro! A menina não ria, mergulhada numa tristeza sem fim, apenas dormitava, sobressaltada. O menino chorava, recusava despir-se e descalçar as botas, não queria alimentar-se, praticamente não dormiu, exibindo um mal-estar profundo, o que provocou naturalmente muita ansiedade e desilusão no casal e que levou a Segurança Social a procurar juntar os manos, o que acabaram por concretizar. As crianças mostraram uma satisfação indescritível, com o menino a abraçar a irmã, que ria a bandeiras despregadas, num contentamento magnífico.

A adaptação foi excelente e vieram a ser ambas adoptadas pelo mesmo casal.

Este foi um caso com um final feliz, mas nem sempre assim sucedeu. Durante a minha vida profissional foram muitos os casos em que irmãos foram separados. Ou porque eram de sexos diferentes, ou por causa de pertenceram as diversas faixas etárias, assisti demasiadas vezes a estas decisões, quase sempre administrativas e sem qualquer hipótese de alteração. Com ressalva dos casos, excepcionais, em que apesar de irmãos, não tinham vivido juntos, as separações conduziam sempre a um indizível sofrimento.

Já por diversas vezes tenho escrito sobre a importância das relações afectivas profundas na vida de uma criança. Quando estamos perante crianças cujos pais não quiseram ou não foram capazes de lhes proporcionar um desenvolvimento saudável, colocando em risco a sua segurança, e tiveram de ser confiadas a outrém, muitas vezes verificamos que essas crianças estabeleceram relações  fortíssimas com seus irmãos. E, com frequência, constatamos que os mais velhos desenvolveram atitudes de protecção particularmente relevantes e que os mais novos apenas se sentem seguros na sua presença.

Daqui resulta que por um lado, é importante manter tais relações afectivas que são necessárias à estabilidade psicológica da criança, e por outro lado, para crianças já fragilizadas por ausência de pais cuidadores e protectores, mais rupturas prejudicam inevitavelmente a sua recuperação psicológica, comprometendo o seu desenvolvimento integral.

Creio, pois, que a realidade nos vem demonstrando que há um direito fundamental da Criança, porque resulta dos novos conhecimentos científicos na área da psicologia da infância e da adolescência e que por isso deve ser reconhecido pelas Leis, e que é o Direito à preservação das suas relações afectivas profundas.

Se este Direito for consagrado expressamente, decerto muito do sofrimento que este vídeo documenta e que a história que vos contei confirma, será evitado, e no superior interesse  da criança, 25 anos depois da aprovação da sua Convenção, este deverá ser também um tema a não descurar.

Para que os Direitos de uma criança não sejam palavras vãs na hora decisiva da sua aplicação à vida, é preciso que os casos estejam presentes no nosso espírito.

Porque a vida precisa do Direito e dos Direitos, mas o Direito só será justo se servir a vida.

 

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