“O projeto que mais nos orgulhamos são sempre os filhos”

2ª Parte da Entrevista publicada no Diário de Notícias, dia 2 de Setembro de 2017, por Céu Neves

Os tribunais pintaram-lhe um quadro menos cor de rosa da realidade, ponde de lado a ideia romântica com que tinha saído da Faculdade de Direito, em Lisboa. Sobretudo quando confrontada com casos de violência doméstica e de abusos sexuais de crianças. Concluiu que estes fenómenos são mais graves do que se possa pensar e pede aos adultos que acreditem nas crianças e tenham em conta as suas opiniões. Entre a magistratura, os projetos que fundou e os cargos que teve, o filho joão será sempre o seu melhor projeto.

Presidir ao Instituto de Apoio à Criança acaba por ser uma consequência natural do fez até aqui.

Sim, quer dizer, tive que ser convidada, fui convidada pela Dra. Manuel Eanes [então presidente do IAC], já eu estava no Tribunal de Família e Menores. Coordenei a comissão que elaborou o relatório para a ONU sobre a aplicação da Convenção dos Direitos das Crianças em Portugal e, uma das minhas preocupações foi incluir organizações não governamentais (ONG”s)e, mais uma vez, aparece o IAC, portanto a minha vida esteve sempre ligada ao Instituto. Regressei ao tribunal de menores depois de terminarmos o relatório e fui convidada pelo Dr. Bagão Félix para fazer parte do Comité Técnico Científico da Casa Pia e, mais tarde para presidir à Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco.

Refere nomes que se repetem ao longo dos anos na abordamos destes temas, significa que pouca gente se interessa por eles?

A área dos direitos da criança é cada vez mais de prestígio mas durante muito tempo não foi. Hoje é reconhecida a sua importância e o relevo de envolver pessoas com capacidade e ideias, que reflitam sobre as matérias. Não basta saber a lei, é preciso analisá-la, ver se é bem aplicada e como a podemos melhorar.

Quando foi a sua primeira participação cívica.

A minha geração era muito inconformada. Cheguei à Faculdade de Direito de Lisboa em 1971 e, antes do 25 de abril, havia a consciência nos estudantes de Direito que tinham de fazer alguma coisa para mudar o mundo, havia consciência cívica e política. Em 72 foi assassinado o meu colega Ribeiro Santos, chocou-me imenso, ele tinha sido uma das pessoas mais velhas que conheci na Faculdade, integrou-me na associação – uns tempos depois fecharam a associação -, o homicídio dele marcou-me muito.

Diz que as crianças não têm sindicato, o IAC tem o papel de um sindicato?

Durante muito tempo tive uma Convenção dos Direitos da Criança editada pelo IAC, em 1990, com prefácio da Dra. Manuela Eanes que falava numa provedoria para as crianças. Realmente, o IAC quer muito essa provedoria mas penso que é difícil, só com a alteração da Constituição, embora se ganhasse muito, e vai fazendo esse serviço.

Quais são as prioridades do IAC?

O IAC nasceu com uma grande prioridade: combater a violência, lutar contra os maus tratos de crianças, contra os abusos sexuais, portanto, integrei-me muito bem no Instituto, onde estive destacada oito anos e já era associada há muitos anos. Voltei mais recentemente. Temos o SOS Criança que foi concebida para ouvir vítimas de violência, duas linhas europeias para as crianças desaparecidas e abusadas sexualmente que são o 116000 e o 116111, esta mais geral. Só em 2007, com a Convenção de Lanzarote, se falou na necessidade de haver linhas telefónicas anónimas e confidenciais, quando o Instituto tinha esse serviço desde 1988. Outro dos projetos muito forte é o das Crianças de Rua, não só as crianças vítimas de maus tratos como as muito pobres e que são excluídas da sociedade, onde há desamor, negligência, todo um conjunto de circunstâncias que fazem com que gostem mais de estar na rua do que em casa.

As crianças são o elo mais fraco?

São o elo mais fraco como as mulheres, geralmente, num agregado familiar violento, as crianças sofrem mesmo que não sejam as vítimas diretas, sofrem muito por ver a mãe a ser agredida e têm medo que a violência se manifeste contra elas. E, às vezes, quando são mais crescidinhas, surgem as recusas em ter visitas com o pai e eles não o percebem. Nos casos de grande violência são as mulheres agredidas e as crianças.

O que é que tem mudado em relação aos problemas das crianças?

Tem mudado essa questão da alienação parental, que é uma forma muito fácil de resolver problemas complexos. O essencial da violência contra a criança, a criança não ser ouvida, ser desconsiderada nos seus direitos, mantém-se. Mas houve melhorias, os profissionais estão mais despertos para ouvir as crianças, para os proteger, estão mais vigilantes, os próprios pais têm mais cuidados. E a verdade é que nunca a criança mereceu tanta atenção, também se calhar por haver menos crianças, tem outro estatuto, a própria visão da pediatria, da psicologia infantil ajudou a mudar isso. O facto de haver uma convenção internacional que esclarece e estrutura os direitos da criança foi um avanço extraordinário

A noção da gravidade do fenómeno dos abusos sexuais que teve nos tribunais é corroborado com a sua experiência no IAC?

Sim. Continuam a mandar-me emails, cartas, tenho ideia que sim. Nos primeiros tempos de estar no IAC, todas os dias apareciam casos, hoje, penso que ainda há muitas situações de descrédito das vítimas. Esta minha análise coincide com a que vi mais tarde na Anna Salter [ Pedofilia e Outras Agressões Sexuais], ela entrevistou todo o tipo de criminosos que lhe diziam que as pessoas se recusavam a acreditar na real dimensão dos problemas.

Quando sai da Comissão Nacional da Proteção de Menores é crítica em relação ao modelo. Continua crítica?

O que achei sempre é que as comissões de proteção de crianças precisavam de mais formação especializada, foi uma crítica a nível dos conteúdos.

As coisas estão melhores?

Melhores desde quando? A gente nunca sabe, os criminosos estão sempre à frente, inventam sempre maneiras de fugir e tornear a lei, temos de estar sempre vigilantes. Tem sido feito algum investimento quer no recrutamento de pessoal especializado quer a nível da formação, o que é fundamental. Também estamos melhor a nível legislativo. Foi importante a questão dos abusos sexuais passarem para os tribunais, agora, temos de por em prática algo que as convenções europeias têm aconselhado, ou seja, que as ONG”s possam intervir nos casos das crianças maltratadas. A Convenção dos Direitos da Criança veio instituir uma série de direitos e um dos mais difíceis de concretizar tem sido o direito à participação. A criança deve ser parte nas ações para a defender, ter voz ativa e a sua opinião ser respeitada. Sei de casos de juízes que não respeitem as opiniões das crianças, não pode ser, o tribunal não pode ser um instrumento de tortura. As crianças não podem ser obrigadas a conviver com quem não desejam.

Essas decisões são tomadas depois de uma avaliação da situação.

São sempre decisões judiciais.

Com base em pareceres técnicos.

E esses pareceres deviam de ser mais respeitados. Claro que essa avaliação deve ser feita por pessoas experientes e não acabadinhas de sair da faculdade. Mas as pessoas romantizam a realidade, quem me dera ver sempre o mundo cor de rosa, mas essa não é a realidade.

Pensava assim quando se licenciou?

Não, também tinha uma visão romântica. Agora discordo profundamente da Dra. Maria Saldanha Ribeiro [psicóloga e mediadora familiar que defende a teoria da alienação parental] e na altura era muito amiga. A Maria Saldanha, eu e a Teresa Féria [presidente da Associação de Mulheres Juristas] fizemos a proposta de alteração da lei para a s responsabilidades conjuntas da guarda parental, só que, realmente, a realidade impôs-se-me, quando a tese dela recusa todo e qualquer abuso.

Vê o mundo de que cor?

Há pessoas extraordinárias mas também há muita perversidade e cada caso tem de ser tratado como cada caso.

Qual é o projeto que mais se orgulha?

É difícil. O projeto que mais nos orgulhamos são sempre os filhos.

Tem quantos filhos?

Um, com 30 anos. Quero pensar no IAC, na Associação de Mulheres Juristas, mas o João vem em primeiro lugar.

É viúva, como é que isso afetou o seu trabalho?

Marcou muito. Tomei posse na Comissão Nacional de Proteção de Jovens em setembro de 2003 e enviuvei em outubro, foi um período muito difícil da minha vida. Estava muito devastada e não consegui continuar na Comissão, sai dois anos depois, penso também que havia outro projeto para a Comissão. Mas, realmente, estava a precisar de sair, foram dois anos muito desgastantes, devastadores mesmo.

O que gostaria de ver daqui a 20 anos?

Gostava que a questão da igualdade de género fosse uma realidade, que a violência contra as mulheres pertencesse ao passado, mas é muito difícil. Até parece que que estou a sonhar, porque quando foi o 25 de abril, há 40 anos, eu pensava assim, daqui a 20 anos … Entretanto, já passaram 40, e não se avançou muito. Gostava que houvesse mais credibilidade nos depoimentos e testemunhos das crianças, é importante que se veja a questão dos abusos, mas a audição da criança é fundamental.

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