O Valor da Palavra

Foi há dias notícia nas redes sociais que, no Rio de Janeiro, uma adolescente de 14 anos, depois de quatro anos de pesadelo, em que era molestada sexualmente pelo padrasto, adquirira uma câmara de filmar e conseguiu registar uma das investidas do agressor, de 48 anos, enquanto passava roupa a ferro no seu quarto. Um canal de televisão brasileiro entrevistou, ocultando, porém, as respetivas identidades, a mãe, que afirmou de nada suspeitar, e a criança, que referiu que os abusos eram acompanhados de ameaças à sua vida e da sua família.

Como correu riscos esta criança ao decidir filmar! Poderia ter-se verificado uma verdadeira tragédia se o agressor tivesse descoberto! Muitos destes predadores sexuais são sádicos e a maioria não sente qualquer empatia com as vítimas…

Não pode, portanto ser este o caminho, que acrescenta ainda mais perigo para a vida destas crianças.

Creio que esta decisão, que envolveu riscos enormes, só foi possível porque a criança não confiou que alguém acreditasse nela.

Todos os dias são divulgados casos de crianças que suportaram, em silêncio, abusos sexuais durante anos a fio, porque ficam tolhidos pelo medo de os agressores concretizarem as ameaças com que aterrorizam as vítimas.

Tenho verificado que este tipo de violência, perpetrada de forma prolongada no tempo, dentro de casa, baseada em conceções que radicam numa visão hierarquizada dos seres humanos, tem sempre contornos semelhantes.

Por isso, sucede exatamente o mesmo com a violência doméstica. A razão mais forte e que é comum a todas as mulheres vítimas de violência é o medo. E como têm razões para isso! Sabe-se agora que algo que as organizações feministas já intuíam por razões empíricas tem sido confirmado nas pesquisas dos últimos anos que nos fornecem dados estatísticos incontornáveis sobre essa realidade: grande parte dos homicídios ocorre já depois da separação do casal. Por isso, as mulheres, que conhecem os seus agressores melhor do que ninguém, têm medo de serem assassinadas, perseguidas, humilhadas, têm medo que lhes sejam retirados os filhos…

Acresce que as vítimas de violência doméstica, como de abusos sexuais dentro da família, sabem bem como é difícil que todo o circunstancialismo de facilitação de que se serve o agressor para atingir os seus propósitos seja devidamente valorado em termos de agravação, já que muitas vezes é até invocado para atenuar a responsabilidade.

O mesmo sucede noutras circunstâncias graves, designadamente quando o abuso sexual é praticado por alguém que tem uma relação de superioridade em razão do exercício de uma profissão. Ou seja, além do facto de a vítima ser uma pessoa que pela sua idade já se encontra numa situação mais vulnerável, existe ainda uma relação de certo tipo de subordinação que facilita a conduta criminosa.

Também há dias foi noticiada a sentença dada por um Tribunal de Montana a um professor, à data com 49 anos, que abusou de Charice Moralez, uma aluna adolescente com 14.   Cerca de três anos depois, pouco antes de completar 17 anos, Charice viria a cometer suicídio. O Tribunal entendeu que deveria apenas condenar numa pena simbólica, porquanto, de acordo com fotos que viu, a jovem aparentava ser mais velha. A mãe, inconformada, afirmou que iria recorrer. Realmente, com trinta e cinco anos de diferença, e sendo o condenado professor da malograda vítima, é muito significativo que o Tribunal entenda tão importante a sua aparência, e desvalorize o seu sofrimento, que viria a conduzir à depressão profunda e à morte.

É minha convicção que as crianças continuam a ser muito desprotegidas por esse mundo fora. As mais novas porque obviamente muitas vezes nem sequer têm capacidade para compreender na sua plenitude o abuso, e têm um medo terrível de enfurecer o agressor. As adolescentes porque além do medo, que existe invariavelmente, sentem uma vergonha imensa, receando também serem culpabilizadas pelos actos do abusador, o que este aliás quase sempre sugere para as manter em silêncio.

Mesmo nos Países onde a democracia impõe a defesa dos Direitos fundamentais, as crianças ainda sabem como é desconsiderada a sua vontade, sentem como é desvalorizado o seu sofrimento e ignorados os seus sentimentos, e receiam não terem crédito os seus relatos. A vida está aí para demonstrar as atitudes de profundo desrespeito para com elas. Todos os dias.

A palavra da criança ainda é frequentemente posta em causa, duvidando-se da sua credibilidade e quem acredita nela nem sempre pode dizê-lo abertamente.

Que o diga Inês Pedrosa, de quem fui testemunha numa ação movida justamente por ter dito num artigo de opinião que acreditava numa criança. Também acreditei nessa criança, mas tive a sorte de não ter sido processada por isso.

Compreendo, pois, que a menina brasileira tenha sentido necessidade de gravar as imagens do abuso. Mas a solução não pode passar por aí. Creio que o caminho justo será o de ouvir as crianças. Estou convencida que se as escutarmos, não poderemos deixar de acreditar.

Um comentário sobre “O Valor da Palavra

  1. Não concordo inteiramente. Nem com o descrédito das afirmações de uma criança, nem com o crédito. As crianças, como qualquer ser humano, pode mentir.Com a agravante de não se aperceber das consequências, ás vezes, trágicas que as suas afirmações têm. Pex., uma miúda pode acusar o professor de a ter violado, só para justificar perante os pais de uma gravidez. Protege o namorado… e não avalia o que vai acontecer na vida do prof. que pode muito bem perder a profissão, os amigos e a família. As acusações feitas por crianças tem de ser muito bem avaliadas. O mesmo acontece nos casos de violência doméstica. O desejo de se vingar da traição do marido levou uma conhecida a acusá-lo de violência. Não sei se é verdade ou mentira – sei que estas acusações têm de ser vistas conforme a pessoa, o meio e o historial da família. No entanto, concordo que é malévolo descartar sem investigar.E uma falta de bom senso…

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