Em defesa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento

Às vezes, gosto de pensar que já nada conseguirá surpreender-me. Estudei mais, vivi mais, reflecti mais, e por isso, adoro arranjar explicações para tudo, mas a verdade é que ainda dou comigo a ficar admirada com posições de pessoas que considero, e que mostram que afinal não as conhecia tão bem como imaginava. Não é o facto de constatar que há demasiados temas que não são consensuais, ao contrário do que se apregoa. Habituei-me a analisar bem afirmações relativas aos direitos da Criança e essa conclusão é, para mim, lamentavelmente, óbvia. A concordância é demasiadas vezes, meramente aparente e basta um olhar mais atento para nos apercebermos das divergências profundas e de essência, que algumas discussões encerram.

Bastará pensarmos nas prioridades e concluiremos que inexiste consenso e que este é com frequência formal, quando não há propriamente uma real intenção de concretizar medidas, mas apenas declarações discursivas, sem essência, sem coerência…    

Mas o que me incomodou, também, neste manifesto contra a Disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, foi ver entre os subscritores pessoas por quem tenho apreço, e que tenho como defensores dos Direitos Humanos, que sei serem contra a violência sobre as mulheres e as crianças e que deploram as violações e os abusos sexuais dentro da família.

O que levará estas pessoas a subscrever um manifesto contra a Disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, que é justamente uma poderosa arma contra as ideias que conduzem à violência sobre as mulheres e as crianças? 

A violência que é exercida sobre grupos historicamente mais vulneráveis como as mulheres e as crianças tem múltiplas causas, mas há uma que é determinante e que se reconduz ao papel de dominância que leva ao autoritarismo e ao desrespeito pelos direitos dos mais fracos. 

Todos quantos temos a causa dos direitos humanos como missão de vida, ficámos chocados com os depoimentos das centenas de vítimas que por esse mundo fora vieram denunciar as atrocidades sexuais cometidas em internatos religiosos. Desde a Itália à Irlanda, desde a Austrália aos Estados Unidos, as vítimas que sobreviveram sofrem ainda hoje, com cinquenta, sessenta ou mais anos, os danos psicológicos dessas crueldades.

Mas o mais aterrador foi sabermos, através de inquéritos de vitimação levados a cabo por centros de investigação de Universidades de referência, que o número mais extenso das vítimas resulta de crimes praticados na família. 

O muro de silêncio é ainda mais denso, o sofrimento é ainda mais profundo e o tabu é ainda maior.

A Educação é das armas mais poderosas contra a barbárie. 

A Educação é o meio mais extraordinário de lutarmos contra a exclusão social e a pobreza extrema, e é também um instrumento privilegiado para combatermos o preconceito e promovermos as ideias justas.

Por isso, não obstante ter consciência que as mudanças estruturais das sociedades precisam de mudanças a nível da economia, entendo a Educação sobretudo como potenciadora de esperança, porque o conhecimento permite, com a ajuda da cultura, uma forma especial de espalharmos ideias de fraternidade, igualdade, solidariedade e respeito pelo outro. 

A Educação para a Cidadania tem sido, entretanto, objecto de muitos ensaios e estudos no nosso País e a própria ONU e o Conselho da Europa têm preconizado acções neste âmbito para contribuirmos para uma verdadeira igualdade de oportunidades e para um mundo mais justo, sem discriminações.   

O Professor Hermano Carmo, que recentemente se jubilou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, tem uma obra notável sobre o tema da Educação para a Cidadania, que merece ser mencionada. 

Por outro lado, é interessante salientar que ouvimos recorrentemente dizer, a propósito da legislação incumprida ou ineficaz, em matéria de violência doméstica, por exemplo, que há necessidade de mudarmos a cultura para obtermos melhores resultados. Daí que não deixe de ser um pouco frustrante verificar que quando existe uma possibilidade de através da educação transformarmos a dita cultura da violência, acaba por haver uma incompreensível oposição que se traduz numa receita de inacção ainda mais estranha, como se tudo já estivesse bem na sociedade, e não devesse haver a ambição de tornar a nossa comunidade mais desenvolvida, mais igualitária e mais justa.

Ainda ontem, quando ouvia o debate entre o Secretário de Estado-Adjunto da Educação João Costa e o Ex-Reitor da Universidade Católica Manuel Braga da Cruz, reparei que os dois temas que mais reservas mereceram aos subscritores do primeiro Manifesto foram a igualdade de género e a sexualidade. Curiosamente, fiquei a saber que não se opõem a que a Disciplina seja obrigatória,  pelo que o problema se reconduzirá, creio, à questão dos conteúdos e da legitimidade para a objecção de consciência.

Ou seja, para este conjunto de pessoas, a Disciplina até pode ser obrigatória, os temas da defesa do ambiente, a interculturalidade e a participação cívica até serão admissíveis, o que contestam estes subscritores, quase todos ex- governantes,  são aquelas que são matérias decisivas, essenciais para combater a violência familiar, designadamente a violência sexual, afinal as que estão no âmago do que são os Direitos Humanos fundamentais.

Em meu entender, não lhes assiste razão. 

Desde logo, porque os temas da Disciplina são importantes, as matérias são actuais, necessárias e adequadas aos fins que visam. Mais, quer-me parecer que permitem uma discussão salutar e isso desenvolve o espírito crítico e a capacidade pensar. Ao suprimir aqueles que são os seus temas estruturantes, a Disciplina, como foi concebida, ficaria desfigurada, amputada dos valores fundamentais que a motivaram.  

Há décadas que andamos a discutir a necessidade de uma Disciplina com conteúdos deste tipo, com uma forte componente em Direitos Humanos, e que potenciasse o pensamento crítico e livre. Foi positivo constatar que se juntou aos iniciais temas a sensibilização de matérias tão relevantes como a participação cívica e valores como a defesa do ambiente ou a igualdade e ainda,  com base em recomendações de peritos como o Prof. Doutor Daniel Sampaio, por exemplo, que vem defendendo a importância de serem dadas noções básicas de educação sexual, temas complexos, mas indubitavelmente relevantes, a ela associados como a dos abusos sexuais.   

Pois que se o que se pretende, é sensibilizar as crianças e os jovens, progressivamente, acerca de matérias que os vão ajudar a tornarem-se socialmente participativos e cidadãos responsáveis, sem esses temas, muitos dos objectivos ficariam irremediavelmente comprometidos.

Se estiverem em risco ou se forem vítimas de violência, terão mais informação para se poderem defender ou saberem a quem recorrer para pedirem apoio.

Se pelos exemplos familiares, pretendessem seguir modelos violentos no namoro, poderão consciencializar-se da censurabilidade dessas condutas violentas e virem a abster-se de as praticar. 

O respeito pelos direitos também se ensina e já existem estudos que demonstram a eficácia das acções de sensibilização. 

Todas as iniciativas que se destinem a combater o fenómeno da violência familiar e inter-pares são bem-vindas.

Aliás, os efeitos perversos da violência doméstica por exemplo, são cada vez mais estudados.

Sabe-se agora que além dos danos psíquicos, há também danos físicos causados pela violência familiar. 

Há imensos anos que são descritos males fisiológicos graves em casos de sofrimento psíquico associado, provocado pela vivência em ambientes familiares violentos.

Eu própria verifiquei esses efeitos de crianças que perderam o andar, a fala ou que regrediram na escola, ou que deixaram de controlar os esfíncteres, e ouvi relatos arrepiantes sobre crianças que ficaram muito doentes e que provavelmente nunca conseguiram recuperar. 

Houve um caso que me foi contado pela Drª Maria José Vidigal, de um menino de nove anos que ficou em estado catatónico e que não conseguia mover-se, por paralisação dos músculos dos membros, após ter assistido à morte de sua mãe. Ainda foi acompanhado no Centro de Saúde Mental Infantil durante alguns anos, mas nunca mais recuperou daquela ferida imensa e profunda que o marcou para a vida. 

Hoje, na sequência das pesquisas de Elisabete Blackburn, que ganhou o Prémio Nobel da Medicina em 2009 existem já evidências científicas que provam que a violência grave e prolongada tem consequências muito negativas a nível do tamanho dos telómeros (a extremidade das células), o que prejudica a protecção do organismo relativamente às doenças e às infecções. Portanto, não há desculpas para mantermos tudo como está. 

A crueldade, os tratamentos degradantes e humilhantes, além de serem proibidos pela Convenção contra a tortura,   são tóxicos para as pessoas, em especial para as crianças.  

Não temos, por isso, o direito de privá-las de elementos e informação que podem ser úteis para a sua protecção e a sua segurança.

Os conhecimentos actuais devem ser colocados ao serviço do bem-estar das pessoas, em especial das mais vulneráveis e a própria Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, que consagrou o Direito à Educação e à Cultura, deu-lhe conteúdos inequívocos que não podem ser ignorados, esclarecendo bem os seus fins. É verdade, a Convenção entendeu dever clarificar a que se deve destinar a educação. 

O artº. 29º da Convenção refere que se deve promover o desenvolvimento da personalidade da criança, procurando sensibilizá-la para o respeito pelos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e prepará-la para assumir as suas responsabilidades numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre os povos e também promover o respeito da criança pelo meio ambiente.  

Acresce que há 25 anos, houve um conjunto de Estados que acordaram em diversas acções para alcançar a igualdade em razão do sexo. Foi a chamada Plataforma de acção de Pequim, que resultou de uma Conferência onde se declarou que os Direitos das Mulheres são Direitos Humanos.  

O artº 9º al. h) da Constituição da República nasceu um pouco desse amplo movimento que se gerou em torno dos Direitos Humanos das Mulheres, porquanto, por ocasião dos 20 anos da Constituição da República, na revisão constitucional de 1996-97, foi possível um amplo consenso que conduziu à inclusão da promoção da Igualdade entre homens e mulheres como um dos deveres fundamentais do Estado. Orgulho-me de ter contribuído para a introdução desse preceito, enquanto Vice-presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (à data), que fez uma proposta que viria a ser aprovada pela Comissão de revisão e pela Assembleia da República (com poderes Constituintes) que foi consagrada na Lei Constitucional nº 1/97. 

A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento veio concretizar desde logo aquele comando constitucional. 

Depois veio também pôr em prática o disposto no artº 29º da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, ratificada em 1990.

Finalmente, veio dar execução a algo que o Conselho da Europa preconizava, designadamente a Convenção de Lanzarotte, que dedica um capítulo à sensibilização das crianças para a questão da exploração e dos abusos sexuais. 

Ou seja, quer a nível interno, quer a nível internacional, os Estados têm sido aconselhados a dar execução a medidas desta natureza com vista a um combate mais eficaz a estes fenómenos tão prejudiciais para o desenvolvimento harmonioso das crianças. No nosso País, por exemplo, a violência doméstica no ano 2000 e os abusos sexuais praticados pelos pais no ano de 2001 passaram a ser crimes públicos, o que é revelador de que aquela atitude de indiferença do Estado relativamente aos crimes violentos dentro da família, que considerava assunto privado, deu lugar a uma atitude mais exigente, motivada também pela maior censura social dessas infracções, que na minha meninice eram mencionadas apenas como “relações incestuosas”. Como se as crianças com seis ou sete anos pudessem  opor-se às violações dos pais.

Não consigo conformar-me com o branqueamento destes crimes hediondos que tornam a vida destas crianças num inferno.  

Mas haverá alguma dúvida sobre a importância da Disciplina de Cidadania e sobre a necessidade de ela versar sobre temas de direitos humanos fundamentais?

O negacionismo da violência doméstica como o negacionismo da violência sexual dentro da família é um dos mais ancestrais meios utilizados para encobrir crimes graves, perpetuando a visão prepotente do modelo autoritário de família. Mulheres e crianças vergados ao jugo dos mais dolorosos tabus que têm impedido que ainda no nosso tempo este drama persista, e por consequência que não seja encarado como uma dura realidade a transformar.

O pior cego é aquele que não quer ver e o tal manifesto que contesto quer-me parecer que se recusa a ver o papel que poderá vir a desempenhar esta Disciplina no combate à violência mais feroz, porque mais escondida. 

Romantizar a vida familiar, passando uma mensagem que desvaloriza a violência, fazendo crer que os maus tratos ou os crimes sexuais são situações raras sem significado apenas servem para manter a ocultação do martírio vivido por algumas crianças.

A Dignidade da Criança exige de todos nós uma atitude pró-activa e é por isso que decidi escrever este artigo, que é também um apelo, aos do primeiro manifesto que reconsiderem, e aos do segundo que não desistam e não deixem de argumentar.

Esta é uma causa que merece a nossa reflexão.

Por um mundo mais justo, mais igual e livre de violência.  

Comentários sobre “Em defesa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento

  1. Santo Agostinho de Hipona, que fsleceu em 430 da nossa Era, escreveu o seguinte: “Ama e faz o que quiseres”.
    A minha questão é: as pessoas auto-amam-se para depois amar?

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  2. Mais um belo artigo, esclarecedor em defesa das crianças.Quem não concorda é porque não conhce a realidade de muitas das familias.Sabemos que são os pais que deverão ter o primeiro papel na educação dos seus filhos mas o problema é que muitos deles não sabem ou vivem em contextos muito complicados.
    Obrigada Dra Dulce

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  3. Faço minhas as suas palavras e preocupações. Interrogo-me sobre os verdadeiros motivos que levaram aquele encarregado de educação a tomar tal posição. Esconde algo? Mas, mais me intriga o apoio que recebeu .

    Clementina

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  4. Subscrevo.
    Longo caminho temos, ainda, de percorrer.
    Este é o cerne da questão, não se pára o flagelo no fim da linha, mas na sua génese.
    Não podemos baixar os braços!

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  5. “Por um mundo mais justo, mais igual e livre de violência”
    Sucintamente , porque não sou funcionário publico tenho que trabalhar .

    O Estado é a entidade Abstracta mais perigosa para o desenvolvimento de uma sociedade como bem se pode verificar ao longo da historia da humanidade !!! Em primeiro Lugar a FAMÍLIA !! todo o seu texto está impregnado de viês ideológico , bem escrito e cheio de subtilezas próprias do estamento burocrático. O estado não tem que se meter nos gostos sexuais das crianças . Ele tem que instruir Não educar . Especialmente Educar neste Relativismo moderno de falso progresso .
    Agora referente as sua premissas : “Mundo mais Justo ” com certeza só com menos estado e mais sociedade civil activa e construtiva liberal. “Igual” simplesmente não existe faz parte das utopias jacobinas . Dito de outra forma a igualdade é um artificio que não encontra a Verdade na realidade do mundo concreto . ” Livre ” Com certeza que não é com o estado a querer regular todos os aspectos da vida social intrometendo-se na educação das famílias . alias no seu texto existe com muita subtileza a ideia que de uma forma geral as famílias não entendem nada de como educar os filhos e como as estatísticas mostram casos de violência elevada , logo legitima o estado e os seus doutos de gabinete e de falácia lúdicas de se imiscuir na educação desta forma . Ao Estado o que é do Estado e o estado serve a sociedade e não se serve dela para a doutrinação . O Relativismo e vossos valores abstractos não vão reduzir a violência antes pelo contrario . A violência domestica tem que ser tratada em sede própria

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  6. Texto de propriedade.
    A nova disciplina deverá ter por fóco a identidade, muito mais que o identitarismo. As matérias escolares da nova disciplina exigirão actividades complexas, protocolos claros e planos seguros pra capacitar professores por parte do estado.
    Heranças de violência social demandam outros serviços além do serviço de educação escolar.
    Igualdade dos salários entre homens e mulheres exigem políticas de governo e códigos de ética empresarial específicas/os muito além de quotas principmente em ambientes neoliberais.

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  7. Dra. Dulce, subscrevo as suas palavras, comovi-me ao lê-las, elas refletem exatamente o que penso. Tantas vezes dou por mim a pensar que é urgente agir e que cada notícia de violência, seja com as mulheres, seja com crianças, é como uma espada que nos atravessa e envergonha, impedir que se dialogue sobre este tema é retroceder cem anos na defesa dos direitos humanos e representa a demissão do Estado de uma das suas mais importantes funções. Porque, na verdade, ninguém tem culpa de ter nascido numa família violenta ou de se ver, de repente, a braços com um marido violento, tal como ninguém tem culpa de ter nascido mais pobre. Obrigada, é importante que as palavras cheguem assim, incisivas mas ponderadas reais.

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