Oportunidades na Crise ?

Em primeiro lugar, quero agradecer o convite que me foi dirigido para participar nestas jornadas de Pediatria Social.

Felicito a organização pela oportunidade dos temas escolhidos e quero também dizer-vos que foi um prazer ter encontrado tantos amigos que há tanto tempo percorrem como eu o caminho da promoção dos Direitos da Criança. E por fim, quero dizer-vos também que neste ano em que celebramos a Convenção sobre os Direitos da Criança pelos seus 25 anos, estar aqui na companhia de pessoas que dedicam a sua actividade à causa da defesa da criança e cujo trabalho é reconhecido pelos métodos inovadores que utilizam, é muito gratificante.

Já alguns palestrantes assinalaram que cada vez mais e hoje é praticamente pacífico que a saúde não pode ser apenas a ausência de doença. A saúde compreende não apenas o bem-estar físico, como também o psíquico, que pressupõe a realização de múltiplos direitos, designadamente sociais, económicos e culturais…

Daí que desde a primeira hora as Associações e as secções especializadas dos departamentos de saúde infantil tenham sentido necessidade de acrescentar o “Social” à Pediatria. E na verdade, desde que em 1962, o Professor Henry Kempe, ilustre pediatra que dedicou a sua vida à promoção dos Direitos da Criança, publicou o livro “Síndroma da criança maltratada”, procurando chamar a atenção para a dificuldade do diagnóstico e para os riscos de consequências irreversíveis, e designadamente de morte, ficou ainda mais claro que era necessário ter em conta todas as condições sociais que rodeavam a vida das crianças para mais eficazmente podermos defendê-las.

Por isso, achei muito consequente que este encontro da Pediatria Social tenha decidido que falar da crise e reflectir sobre como poderemos contribuir para minorar o sofrimento das crianças vítimas de um contexto desfavorável seria importante.  Já ouvimos a Conferência da Prof. Ana Nunes de Almeida, que nos premeia sempre com excelentes comunicações sobre a sua investigação e estudos sobre a sociologia da infância e ouvimos também falar de temas tão preocupantes como a questão dos distúrbios alimentares,  o aumento das velhas doenças infecciosas, a violência doméstica e entre pares.  O certo é que todos temos a sensação que há um conjunto vasto de situações que se agravam com as dificuldades económicas, com o desemprego, sobretudo com o prolongado. E é mesmo assim.  Há cerca de dois anos, ouvimos o testemunho inquietante da Drª Deolinda Barata no sentido de que não apenas se estava a constatar que havia um aumento dos maus tratos em crianças, como mais preocupante ainda, que havia um agravamento na sua intensidade. Portanto, não apenas a dimensão, a incidência, mas estava a verificar-se que o tipo de violência era mais gravosa, com lesões mais sérias, algumas irreversíveis.

E que podemos nós fazer? Que atitudes, e que medidas podemos propor? Creio que devemos voltar ao mestre Henry Kempe, pois se mantêm, em meu entender, absolutamente actuais os três eixos que defendia para a defesa das crianças.

Desde logo, Kempe preconizava a prevenção como essencial. E creio que está na altura de apostarmos mais nas medidas preventivas, através de Programas de sensibilização da comunidade e de formação dos profissionais que lidam com as crianças.

Depois temos de fazer projectos direccionados a públicos-alvo específicos.  Sobretudo temos de estar mais atentos às que sabemos mais vulneráveis, as que vivem na pobreza, as que têm algum tipo de deficiência, as que pertencem a famílias onde já foi detectada violência doméstica, as que são quase invisíveis, por viverem em agregados familiares mais fechados devido a razões culturais, lembremo-nos do caso que recentemente foi notícia das mais de 1400 crianças da comunidade paquistanesa em Rotherham, no Reino Unido que foram abusadas sexualmente.

O segundo eixo, tem mesmo de ser o adequado diagnóstico e os núcleos hospitalares são fundamentais para que esse diagnóstico possa ocorrer o mais rapidamente possível.

Nos núcleos, estão as competências, os saberes. Mas só a vontade e a motivação nos torna capazes. Só a vontade consegue transformar competência em capacidade.

Finalmente, já dizia também Kempe temos a Lei que tem de estar ao serviço da criança e essa qualidade só se verifica plenamente se a lei for aplicável, se for eficaz.

De nada nos servirá uma lei muito bonita e poética, se não for um instrumento que proteja efectivamente a criança.

Tudo isto para vos dizer que acho que sim, que da crise podem surgir oportunidades.

A crise veio confrontar-nos com uma diminuição drástica do número de crianças. Nunca se falou tanto deste problema, que não é novo, mas que agora já ninguém ignora.

Temos uma população cada vez mais envelhecida, havendo consciência de  que será dramático para o País se não conseguirmos inverter esta tendência de inversão da pirâmide populacional, em que há muito mais idosos do que crianças.

Esta realidade cria de alguma forma uma oportunidade, na medida em que as pessoas ficam mais sensibilizadas para a necessidade de defender as crianças, o que leva à indignação acerca dos maus tratos, da negligência grave, do abuso sexual, cimentando a ideia da inadmissibilidade dos comportamentos que se traduzem na violação de direitos.

O Direito Penal acompanhou esta consciencialização. Com algumas hesitações, tardiamente, por exemplo no caso dos abusos sexuais, mas actualmente a violação de direitos fundamentais é crime público, o que significa que o Estado não tolera que a punição das condutas violentas que se traduzem em crimes contra as crianças fiquem na disponibilidade de quem quer que seja.

Falta agora que este princípio chegue ao Direito das Crianças. Sempre que se verifique uma conduta que viole direitos fundamentais, como a integridade física, a liberdade e determinação sexual, a dignidade humana, a criança deve ter direito a que o seu caso seja decidido por um Tribunal.

Outra questão importante é a consagração do direito da criança à preservação das relações afectivas significantes e privilegiadas.

Ainda hoje me lembro como a Prof. Jeny Canha defendeu energicamente que o pequeno Edgar,de quatro anos, que vivera com uma ama a quem chamava mãe, desde que saira do Hospital Pediátrico de Coimbra aos quatro meses, deveria permanecer com ela, sua figura de referência. Não foi seguido o parecer da Prof. Jeny e o Edgar veio a morrer em consequência das graves lesões que lhe foram provocadas pela mãe e pelo companheiro da mãe. Pensava eu que esta tragédia iria conduzir à consagração da prevalência dos laços afectivos quando se constatasse uma ausência de exercício das responsabilidades parentais e simultaneamente uma substituição das figuras de referência, que tivesse conduzido à vinculação com os cuidadores e a uma ruptura dos laços afectivos próprios da filiação.

Mas não. Como costuma dizer o Prof. Rui Pereira, os Juristas são muito conservadores e continuamos a ter decisões contraditórias por esse País fora e mesmo depois de se terem verificado mais mortes de crianças às mãos dos pais, depois de terem vivido anos a fio com outrém, que delas cuidaram, como a Vanessa, por exemplo, que foi queimada e depois atirada ao Rio Douro, a lei continua inalterada.

Mas temos agora uma oportunidade, que espero dê frutos.

Foi nomeada uma Comissão, presidida pelo Dr. Maia Neto, que espero tenha a coragem de não propor apenas alterações processuais e que ouse ir mais longe, a bem da Criança, da sua saúde, do seu bem-estar físico, psíquico e da sua dignidade.

Creio que esta seria uma excelente oportunidade para defender a criança, reafirmando o seu estatuto de sujeito de direito, neste 25º Aniversário da sua Convenção.

Outra questão importante e que esperamos seja revista tem a ver com o reforço do direito da Criança a ser ouvida e a influenciar as decisões que lhe dizem respeito.

Este é talvez um dos Direitos consagrados pela Convenção que se tem revelado mais difícil de concretizar. A preocupação dos Estados tem sido a de limitar o Direito à palavra, não reconhecendo a extraordinária importância para a verdadeira democracia do exercício dos Direitos de Participação por parte das Crianças.

Na verdade, vou tendo conhecimento de audições meramente formais, em que as crianças se queixam de que não tiveram oportunidade de dizer o que sentiam e o que profundamente desejavam.

Aliás, há mesmo casos em que as crianças são ouvidas, expressam os seus anseios, mas não conseguem infuenciar as decisões, ficando com uma sensação de enorme frustração.

Reforçar os Direitos de Audição e à Livre Expressão de Pensamento com todas as consequências será decerto uma forma de reforçar o Estatuto da Criança, e se não forem fortalecidos os princípios através de instrumentos que viabilizem a sua concretização, teremos apenas mais uma oportunidade perdida.

Mas isso só será possível, se interiorizarmos que se a liberdade de expressão é um direito fundamental estruturante da Democracia, as crianças também são titulares desse direito e temos de garantir e assegurar que o podem exercer em todas as situações.

Se conseguirmos que estas duas questões sejam tratadas, a da consagração expressa do Direito à preservação das ligações afectivas profundas e securizantes e a do reforço do direito à palavra, creio que a Lei de Protecção ficará mais amiga das crianças, porque dará mais relevo à Promoção dos seus direitos fundamentais.

   Dulce Rocha

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