Violência familiar, adoção, coadoção e o que é natural

Desde que em Maio escrevi sobre as crianças desaparecidas e o fenómeno que lhe está associado, a exploração sexual, participei em duas conferências, uma na sala do Senado da Assembleia da República, e outra em Bruxelas, onde se falou essencialmente de propostas para melhorar a eficácia das linhas telefónicas de ajuda, e do número único europeu 116000.  Decidi falar de novo sobre este tema tão importante quanto incómodo, porque, se é sempre mais fácil não falar sobre ele, não seria justo para as crianças vítimas dessas tragédias e a justiça sempre me fascinou.

É que os números arrasadores que nos foram trazidos pela Deputada Maria de Belém Roseira provocaram tanto de horror como de surpresa para grande parte da assistência naquele dia de maio, contrastando com a beleza da sala do Parlamento onde decorreu a Conferência…

Vou pois divulgar alguns, já que grande parte dos dados apresentados constam de Relatórios da Unicef que citam estudos da Organização Mundial de Saúde sobre a violência intra-familiar: 275 milhões de crianças no mundo são vítimas directas ou indirectas de violência doméstica. Desses, 150 milhões são meninas e 73 milhões são meninos que já sofreram relações sexuais forçadas ou outras formas de violência sexual. Ainda segundo as mesmas fontes, 96% dos casos de violência física e 64% dos casos de violência sexual são praticados por pais ou familiares próximos, sendo que destes, 71% são pais e 11,5% são padrastos. Ainda a OMS estima que cerca de 100 milhões de raparigas tenham sido vítimas de mutilação genital. Quanto ao trabalho infantil, a OIT estima que dos cerca de 215 milhões de crianças que trabalhavam em 2005, 125 milhões estão envolvidos em trabalhos perigosos e prejudiciais á saúde e ao desenvolvimento, 5,7 milhões em trabalhos forçados ou em regime de servidão, 1,8 milhões na prostituição e pornografia e 1,2 milhões são vítimas de tráfico.

São números esmagadores, mas que não podem paralisar-nos, mas antes fazer-nos refletir no sentido de fazermos do combate a este flagelo uma prioridade.

Antes de mais, devemos, em meu entender ter consciência desta realidade não apenas a nível da sua verdadeira dimensão, mas também no que tem de revelador sobre a crueldade vivida por algumas crianças dentro da própria família.

E é por isso que tomei coragem para falar de novo sobre a adoção e sobre a coadoção.

Há muito tempo que considero as divergências sobre a adoção um sinal de que a questão da procriação é um assunto ainda muito associado ao divino.

No fundo, existe ainda a ideia de que os filhos são uma dádiva de Deus e que, por isso, é algo que ninguém tem o direito de alterar. Daí que, muitas pessoas se recusem sequer a pensar sobre estas matérias, e, há dias, ao referir algumas questões de ética na procriação medicamente assistida, verifiquei que esta é ainda, por vezes, apelidada de engenharia genética e como tal devendo ser evitada, a não ser, claro, que a infertilidade lhes bata à porta, caso em que os arautos da imutabilidade das coisas naturais deixarão de a defender.

Recordo um livro de Maria Velho da Costa de que gostei muito –“ IRENE ou o contrato social” –  que descreve de uma forma como só ela sabe, a falta de sentimento de pertença de Raquel, que embora criada por Irene, nunca lhe tinha podido chamar “mãe”.

Raquel nunca lhe terá perdoado essa decisão e durante toda a obra sente-se essa frustração, que em grande parte motivou a baixa auto-estima e o progressivo afastamento que terão, entre outros factores, é certo, conduzido à sua toxicodependência. “Irene nunca me deixou tratá-la por mãe. Era contra os seus princípios.”, dizia Raquel. Daí o vazio da palavra fortíssima que inventou, e que nos marca durante toda a leitura: “Ningãe”.

Reconhecemos hoje a falta sem fim que faz a uma criança a figura de sua mãe. Daí ser quase unânime o entendimento de que para ter um desenvolvimento harmonioso, a criança precisa de alguém a quem chame mãe, de alguém que a cuide e a ame e com quem estabeleça aquele vínculo único que a acompanhará pela vida fora. Se esses laços não se desenvolverem, será mais difícil a infância, será complicada a adolescência, e será por vezes infeliz a vida adulta, como se reconhece, sobretudo quando observamos as vidas de desamor de tantas crianças ao longo da história da humanidade.

É que, nem sempre foi tão óbvia esta necessidade da criança e nem sempre a natureza ditou às mães os cuidados com os filhos. Nos séculos XVII e XVIII, as pesquisas levadas a cabo por Elisabeth Badinter concluíram que em Paris, a grande maioria das mães entregavam os seus filhos a amas, logo á nascença, que os alimentavam mal, que os deixavam morrer em condições degradantes. E em muitos escritos, os filhos contam que, quando regressavam aos cinco seis anos, eram sovados diariamente, elevando-se os maus tratos a pressuposto de educação. A violência a que eram sujeitos pelas mães e pelos pais que não demonstravam nem afeto, nem sequer empatia para com os filhos, foram, por vezes, descritas minuciosamente, como aconteceu com os jovens Talleyrand e  Lauzun.

São testemunhos pungentes, que falam dos três actos de abandono vivenciados pelos filhos: à nascença, entregues às amas, por volta dos oito anos, aos preceptores e na adolescência, elas eram depositadas nos conventos e eles nos internatos.

Quanto aos pais, há relatos muito chocantes de sevícias, mas houve sobretudo uma enorme indiferença, e/ou sentimentos autoritários de posse, que marcaram as relações pais-filhos até à primeira metade do século XX. Phillipe Ariès, Badinter e DE Mause foram responsáveis pelo início de uma pesquisa histórica da infância e abriram uma investigação até então praticamente desconhecida. Todos eles, porém, de uma forma mais descritiva ou mais tipo ensaio ou até de texto de documentação histórica, salientam que na generalidade as crianças eram muito maltratadas, muito desconsideradas pela sua família.

Nos últimos anos do século XIX e sobretudo durante todo o século passado, houve uma alteração significativa das relações familiares, que passaram a ter por base o afecto e o respeito e, já no final do Século XX, alguns traços de uma maior democracia, devido designadamente à consagração da igualdade entre os cônjuges, sobretudo na Europa, nos EUA e nos Países com sistemas semelhantes. A evolução foi no sentido de um aprofundamento dos laços e dos sentimentos entre os pais e os filhos, reconhecendo-se as vantagens para as crianças da afeição, do cuidado, centrando-se a atenção dos estudiosos nos benefícios da vinculação para o saudável desenvolvimento da criança.

Tem sido uma caminhada longa e difícil pelo reconhecimento dos Direitos das Crianças como seres autónomos, titulares de Direitos, e particularmente está a ser ainda mais complicado ouvir a criança e ter em conta a sua opinião, considerá-la afinal como parte nos processos de decisão em que seja necessário julgar sobre o seu destino. Definitivamente, é minha convicção que só será possível cumprir plenamente os direitos das crianças se elas forem entendidas como essenciais, e se os seus interesses próprios forem o centro nesses processos de decisão.

Ora, analisando o caso da aprovação em 17 de maio no Parlamento do Projeto-lei da co-adoção, creio que estamos perante um caso desses. Creio que ela traduz um consenso entre os deputados cujo sentido de voto foi essencialmente centrado no interesse da criança. Na verdade, trata-se afinal de permitir reconhecer a nível jurídico uma relação afectiva pré-existente e gratificante para a criança, quando não esteja estabelecida outra relação de filiação que não a do cônjuge do adotante, bem entendido.

O direito da criança à preservação das suas relações afetivas profundas é essencial e a sua não consagração expressa na Lei demonstra bem a secundarização da criança e dos seus direitos fundamentais a uma vida tranquila, acolhedora e feliz.

Tem sido um combate tão justo quanto difícil. Tudo porque se continua a ficcionar a bondade das relações biológicas, que se confundem com naturais, quando a realidade vem demonstrando que são muitas vezes a causa da infelicidade da criança.

Natural deve ser sobretudo o amor na família, que pode ser uma família adoptiva.

A prevalência das relações psicológicas, que coincidem, felizmente, na maioria das famílias com as relações biológicas, tenho a certeza que será um dia reconhecido como princípio resultante da progressiva aquisição de conhecimentos sobre a importância da vinculação para o desenvolvimento saudável e equilibrado da criança.

Esta lei, que agora foi aprovada, resolverá um problema de omissão no registo, que toda a vida achei dever ser evitada sempre que possível.

Em suma, a coadoção, nos termos em que foi aprovada, contribuirá para uma protecção mais sólida da criança que já desenvolveu laços de afecto com o requerente da adoção e em que se constata uma relação afectiva profunda e especial, semelhante à da filiação.

Será, pois, um contributo relevante para que uma criança cresça num ambiente mais seguro, de amor e compreensão, o que me parece poder significar que o superior interesse da criança foi considerado prioritário.

Comentários sobre “Violência familiar, adoção, coadoção e o que é natural

  1. Brilhante artido da Dra. Dulce Rocha que aliás é uma grande perita em direito da crianças. As funções que exerceu forma sempre a valorizar e defender os Direitos das Crianças. Parabéns. Gostei muito. A Deputada Isabel Moreira tem evidenciado um enorme coragem e sensibilidade. Por vezes não acompreendem, mas não valorize os profetas do passado, que podem ver uma criança em sofrimento, que passam com indiferença.

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    1. Obrigada, querida Drª Julieta Sampaio! Um abraço para si. Fico contente com os elogios, é muito compensador ouvir comentários tão amáveis!

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  2. Drª. Dulce Rocha provavelmente não se recordará de mim. Há 11 anos procurei-a para pedir auxilio para um menor em situação de abandono. Na altura ajudou-me a avançar com um processo de guarda judicial, que foi despachado em poucos meses. Esse menino de 9 anos é hoje um homem jovem de quase 21, tendo encontrado na minha casa, com a minha companheira, a sua raíz e a sua segurança, depois de uma infância de sucessivos abandonos por parte da família biológica.
    Orgulho-me de a ter tido no meu caminho e de me ter dado o alento necessário para ter coragem para avançar, cheia de medo que estava de não saber ser a mãe que aquela criança precisava. Hoje, eu e a minha companheira temos um outro filho, de cinco anos, filho biológico da minha companheira, por recuso a inseminação artificial em Espanha. Como pode perceber, não bastassem todos os motivos do seu pertinente artigo, também por nós o reconhecimento da coadopção é uma questão de justiça. Para nós, certamente, mas sobretudo para que o nosso filho possa crescer no mesmo ambiente de segurança e de paz em que o irmão mais velho cresceu. Bem haja pela esperança que pôs no nosso caminho, há 11 anos.

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