O Estatuto de vítima e a residência alternada

Em defesa das crianças 

O Estatuto de vítima e a residência alternada

O último relatório da Unicef veio mais uma vez afirmar em frases fortes e sem rodeios que a situação das crianças no Mundo não melhorou. Pelo contrário, a última década foi particularmente mortífera, não obstante a ratificação quase total da Convenção sobre os Direitos da Criança que há 30 anos foi aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Esta constatação é dolorosa para mim, que sou jurista e gostaria de atribuir às Leis e aos Tratados um valor maior do que aquele que se vem a verificar que  efectivamente têm.

Claro que como observadora atenta destas coisas, às vezes dou comigo a pensar que se calhar sou mesmo bastante mais pessimista do que deveria, pois há pessoas que admiro muitíssimo que conseguem sempre ver algo positivo em tudo.  Lamentavelmente, logo a seguir a realidade teima em demonstrar que afinal não estava errada, que as medidas não foram eficazes, ou que se o foram, seguem-se outras que retiram os efeitos vantajosos às primeiras.

Esta década foi na verdade bastante devastadora. Foram as notícias da Venezuela e do Chile e da Síria e do Iémen, e da República Democrática do Congo e do Sudão do Sul e sobre os campos de refugiados e sobre as mortes no Mediterrâneo  e até mais recentemente sobre a Somália. 

Nos últimos meses de 2019, voltámos aliás a observar aquelas crueldades que por vezes queremos pensar estarem já em decréscimo, depois de uns tempos de acalmia. 

Uma coisa é incontestável: o sofrimento das crianças permanece demasiado invisível e muitos dos que em tempos pensei serem sensíveis aos apelos que fazemos em seu nome, mostram a maior indiferença ao choro, aos pesadelos, ao terror que sentem as crianças vítimas de violência. 

Vi há poucos dias um artigo que compara o impacto da violência doméstica àquele que é provocado no cérebro das crianças pelos ambientes de guerra.

Mas já há muito que se conhecem os efeitos devastadores da violência no desenvolvimento do cérebro das crianças. Empiricamente, todos percebemos isso. Há crianças que deixam de falar, outras que têm problemas alimentares, outras que voltam à enurese nocturna, até à encoprese e muitas têm pesadelos e não conseguem estar atentas na escola.  

Indubitavelmente, as crianças que sofrem maus tratos e aquelas que vivenciam situações de violência doméstica são afectadas a nível psíquico, sendo muito negativo o impacto da exposição à violência. 

Há, aliás, estudos que revelam que as situações mais graves de regressões e de comportamentos auto-destrutivos, designadamente de ideário suicida, resultam precisamente da observação pelas crianças de crimes de homicídio, em que a criança perdeu a mãe, a sua figura primária de referência, que lhe prestava os cuidados, que lhe dava afecto e conforto e que  garantia a sua protecção e a sua segurança.  

Após a II Guerra Mundial, foram efectuados estudos que comprovaram esses efeitos nefastos e foram verificados danos irreversíveis no cérebro das crianças sujeitas ou testemunhas das torturas e sevícias nos campos de concentração.

Esses estudos foram sendo desenvolvidos em contextos menos severos, mas idênticos sob o ponto de vista do stress vivenciado pelas crianças, designadamente durante a Guerra dos Balcãs e os resultados foram semelhantes. 

Na última década, prosseguiram mais pesquisas. Boris Cirulnik veio desenvolver estudos interessantes sobre a redução das sinapses em situações de stress e deixou uma nova esperança. Apesar de se comprovarem os prejuízos e o sofrimento para as crianças, os estudos estavam a conseguir demonstrar que com terapêutica adequada, há danos psíquicos que são reversíveis.  

Em 2009, Elisabete Blackburn ganhou o Prémio Nobel da Medicina por ter feito descobertas incontornáveis no âmbito da função dos telómeros, extremidades das células que diminuem com o envelhecimento e doenças graves, mas também em situações de stress. Elisabete Blackburn descobriu que essa diminuição de tamanho dos telómeros afectava a telomerase que tem infuência determinante na protecção  contra as doenças e as infecções.

A partir daí, foram imensas as pesquisas nesta matéria e a própria Elisabete Blackburn foi chamada a desenvolver uma investigação centrada nas crianças de um orfanato. 

A Directora do orfanato, também ela própria médica, tinha a percepção de que as suas crianças, apesar de todos os cuidados, tinham mais doenças do que as outras crianças não institucionalizadas e pediu à laureada Elisabete que a ajudasse a compreender a maior vulnerabilidade que verificava existir nas suas crianças.   

A investigação confirmou a observação empírica e demonstrou que efectivamente as crianças internadas tinham os telómeros mais curtos e depois de um conjunto de factores igualmente ponderados, foi possível concluir que não apenas as sevícias, mas também o abandono conduziam a stress tóxico, pós traumático. Mais, a investigação comprovou também que os danos não eram apenas emocionais ou psíquicos, mas que havia evidências de prejuízos a nível físiológico. 

O inaceitável é que há políticos indiferentes ao conhecimento científico. Acham-se pessoas superiores apenas porque têm poder. O triste é constatarmos que têm uma visão muito redutora da realidade. Desvalorizam tudo o que respeite à criança, e bem assim aliás, o que respeite aos assuntos relacionados com os direitos das mulheres. Tudo o que as feministas defendem os enfada, ficando particularmente incomodados com a teoria do Estado de Elisabete Mackinnon, por exemplo, que consegue desmontar as suas teses, que nenhum benefício trouxeram ao mundo e pelo contrário só alimentaram guerras e mais guerras.

Para muitos políticos de sucesso, as feministas são sempre exageradas. Não os incomoda que haja centenas de mulheres maltratadas, que haja há décadas três a quatro dezenas de mulheres mortas por ano no nosso País, que haja mais de quinhentos órfãos em quinze anos… Isso são efeitos colaterais, que dizem lamentar, mas que no fundo desejariam era que nos esquecêssemos de mencionar. “Que maçada, lá vem outra vez a cassete das mulheres assassinadas!”, pensam muito irritados.  Gostam muito de acordar e pensar “que tudo está no seu lugar, graças a Deus”, como dizia a canção.

Entre nós, isso ficou patente na forma como descartaram a responsabilidade na aprovação do Estatuto de Vítima para as crianças que vivam em contextos adversos, designadamente de violência doméstica. 

Sabem muito bem que elas sofrem, mas talvez não saibam que isso vai afectar a sua inteligência, a sua liberdade de determinação, a sua saúde, a sua longevidade…

Seria bom que se interessassem e que lessem. Pobres crianças, sujeitas a leis que são indiferentes ao seu sofrimento.

Entretanto, na Assembleia da República estão mais projectos. Estes sobre a chamada residência alternada. Não consigo conformar-me que não seja entendido como prioridade o reconhecimento da condição de vítimas às crianças expostas à violência doméstica e que a discussão sobre a residência alternada seja tão prioritária assim, uma vez que a nossa lei permite essa opção. 

Na maioria dos projectos foi reconhecido que a palavra “presunção” era demasiado geradora de dissenso e então preparam-se novas redacções em que se substituiu a palavra “presunção” pela de “regime preferencial”. Mantiveram-se, porém, os fundamentos constantes dos respectivos preâmbulos.  

São projectos que mais uma vez negam a pandemia da violência doméstica, que ignoram o facto de só um número reduzido ser objecto de queixa ou participação às autoridades, mas são sobretudo projectos em que a voz das crianças é desconsiderada.   

Durante a minha vida profissional fui confrontada com muitas situações graves em que não houve queixa e em que houve lesões graves ou mesmo homicídio.

Situações em que a vítima não acreditou que o agressor lhe poderia tirar a vida, ou em que ficou tolhida pelo medo. 

São aliás, bastante comuns e que há quarenta anos, eu pensava que não representavam um número significativo. 

Recordo também casos em que a mãe não conseguia explicar as razões dos receios, mas que vieram a revelar fundamento, designadamente no que respeita à prática de abusos sexuais, tendo alguns deles provocado lesões gravíssimas e irreversíveis a nível da função reprodutora.

Estou a escrever isto porque ainda tenho uma leve esperança que possa influenciar eventualmente algumas boas almas, não obstante saiba que a nossa experiência é única e que é ela sobretudo que nos influencia.  

Infelizes que foram mortas, que confidenciaram o terror a amigas que não acreditaram… crianças de olhar vazio, com choro silencioso, estou a vê-las neste momento. Não mais esquecerei a solidão e a tristeza sem fim dos olhos dos órfãos e dos violentados. 

Mas vamos ter esperança que essas situações sirvam para não consagrar a residência alternada como regime preferencial.

Preocupo-me muito, porque não é seguro, visto que o problema surge sobretudo nos casos em que houve violência e não houve queixa, quando a criança se sente insegura, quando se sente humilhada, desvalorizada, sempre que o conflito é de tal forma agressivo que a criança recusa os convívios.  

Não considerar a criança vítima é desprotegê-la ainda mais.

Os casos de violência vicária sempre existiram, mas poderão  aumentar, devido exactamente ao facto de as crianças não disporem de nenhum dispositivo de segurança que possam accionar em caso de aproximação do agressor. 

Mas será que isto é assim tão difícil de entender? Ou será que apenas querem negar sem pensar na realidade?

Ao agressor-homicida  não escapam as mães, as tias, nem sequer advogados ou até os animais de companhia. Mas obviamente que em Portugal, como em Espanha, França, Itália ou Suiça, os filhos são o primeiro alvo logo a seguir às vítimas mulheres. 

Ainda no início do mês de Dezembro e durante a mesma semana, em diferentes seminários, ouvi relatos sempre impressionantes sobre filhos assassinados por pais que quiseram vingar-se da mulher que terminara a relação. Uma das comunicações foi feita por uma perita espanhola e a outra teve lugar num congresso internacional sobre crianças desaparecidas, que decorreu em Lisboa, organizado pelo International Center for Missing and Exploited Children, Instituto de Apoio à Criança  e Polícia Judiciária e em que participaram entidades policiais e ONG de 29 Países. 

A Associação Suíça de Crianças Desaparecidas nasceu assim, da vontade de uma mãe que se viu privada de seus dois filhos, que morreram às mãos do pai, em período de convívio após imposição de visitas pelo Juiz, que permaneceu indiferente aos apelos da mãe. 

Logo na minha primeira comarca, em Setúbal, tive um caso semelhante. Foi o meu primeiro processo de homicídio. 

O pai matara a filha de dois anos para causar a maior dor do mundo à mãe da menina que decidira um mês antes terminar a relação. 

Já este ano, outra menina foi assassinada logo a seguir à sua avó, no Seixal. 

Estas terão de ser reconhecidas como vítimas da violência extrema. E as outras? As que são vítimas de humilhações, de palavras más que as desconsideram, que nunca são tratadas pelo nome, que vivem em terror permanente…   

Durante toda a minha vida profissional, soube de casos de violências vicárias, em que o agressor dirige a sua conduta criminosa para vítimas cuja morte sabe ser o que mais profundamente causará um sofrimento indizível e maior. 

Muitas das crianças que se recusam a estar com o pai têm um medo tamanho por razões que têm de merecer consideração e que se geralmente não têm a ver com experiências tão traumáticas, pelo menos se deve a insegurança motivada pela ausência de cuidados durante o período de vida em comum.

Mas mesmo sem indícios de violência, porque haverá uma criança ou adolescente de ceder? Porque hão-de ser indiferentes a sua vontade e os seus sentimentos? 

As crianças e os adolescentes têm de ser respeitados nestes assuntos que para eles são da maior importância.

São crianças tão capazes de expressar-se como Greta Thunberg, que com apenas 15 anos conseguiu mostrar as suas qualidades, fazendo com que os problemas climáticos estejam na ordem do dia, mas claro, já sei que para alguns essa é uma menina cuja vontade inabalável não é exemplo que mereça ser mencionado. 

Da mesma forma, Malala, que com apenas nove anos começou a escrever um blogue sobre o Direito à Educação das meninas, será um caso isolado, porque para pessoas que desvalorizam os seres humanos em razão da sua idade, o mais natural é que os adolescentes sejam incapazes de expressar-se. 

Estou convencida que haverá, apesar de tudo, quem esteja insatisfeito com esta cultura de ódio e morte, e que queira contribuir para mudar este nosso mundo. 

Pelos exemplos que temos tido de crianças e jovens inspiradores que têm demonstrado interesse por valores importantes deste nosso mundo e que não se conformam com a mediocridade, tenho esperança neste novo ano de 2020.  

Pela Liberdade, pela Justiça e pela Dignidade, estou convicta que irão continuar a ser as crianças que nos motivam e inspiram na causa maior dos Direitos Humanos.

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