A violência sexual contra crianças e a importância das ONG de apoio

Só há relativamente pouco tempo houve consciência da dimensão do crime de abuso sexual de crianças.

Os inquéritos de vitimação, as reportagens, as pesquisas, os estudos, os relatórios conduziram a um conhecimento que já não é apenas resultante do empírico, e por outro lado constituem mais do que a sua confirmação, pois deixaram de ser só um assunto de ONG de sobreviventes e passaram a um patamar mais elevado com Universidades e Centros de Estudos e Pesquisa a reconhecer que se trata de violação grave de Direitos Humanos a reclamar legislação mais adequada…

Nasci num tempo em que o abuso intra-familiar era definitivamente assunto tabu. Lembro-me de ouvir os meus pais comentarem casos de meninas abusadas. Falavam baixinho e eu, cheia de curiosidade, ia procurando aperceber-me da história porque a seguir já sabia que só tinha acesso a informação reduzida com conselhos acerca dos cuidados que deveria ter no percurso distante entre a minha casa e o liceu. Desse tema falava-se em surdina e por pudor ou desconhecimento, o que me era transmitido levou-me a concluir que  os crimes sexuais seriam quase sempre praticados por estranhos. Daí que nos fosse recomendado que não fôssemos para sítios escuros ou desconhecidos, onde podiam estar à espreita uns homens que nos podiam querer “fazer mal”.  

Os crimes praticados contra crianças do sexo masculino ainda eram mais silenciados. Era um “não assunto”, como agora se diz.  Mais tarde, nos anos 80, quando entrei na Magistratura, chamavam incesto à violação e à relação abusiva dos pais às filhas. 

Os meninos, mesmo que houvesse penetração, não eram considerados vítimas de violação e o crime era o de atentado ao pudor, punível com prisão até três anos.

Mas o mais horrível era mesmo o facto de o crime depender de queixa. Para as crianças vítimas de violação pelo pai que era a situação mais frequente, havia uma probabilidade quase nula de haver procedimento, visto que quem tinha legitimidade para apresentar a dita era precisamente o agressor. 

Era muito injusto que se ignorasse o sofrimento das crianças, que perdura por muito tempo, pois sabemos que ainda que haja denúncia, a dor é muito angustiante durante a adolescência e mesmo na idade adulta.

Aliás, há muitas crianças que não denunciam se não forem apoiadas. Segundo a “Quebrar o Silêncio”, em média, os sobreviventes demoram  quase trinta anos a pedir ajuda.  

Disso tivemos consciência após um conjunto de processos por esse mundo fora, alguns deles documentados nos órgãos de comunicação social e que coincidiram com a investigação do Boston Globe, que veio a dar origem ao filme Spotlight, ou que foram incentivados por ela. Talvez os mais significativos tenham sido os dos internatos da Austrália e dos Institutos Provolo em Verona ou na Argentina, aqui tendo como vítimas crianças surdas. Nestas situações, as vítimas tinham especial vulnerabilidade, ou por terem idades muito reduzidas, ou por serem pobres, doentes ou órfãos, a maioria em regime de internato, portanto em instituições denominadas totais, visto que as pessoas acolhidas aí faziam a sua vida desde que que acordavam até irem dormir. Era no internato que frequentavam a escola e era aí também que tomavam as refeições.

Mas não nos iludamos, as crianças não estão seguras em lado nenhum. Ainda há poucos anos soubemos de um escuteiro aqui em Lisboa, no Restelo. Abusou de centenas de crianças. Nenhuma disse nada aos pais. Foi descoberto pela Polícia Alemã, pois partilhava imagens de abusos na Internet e foi preso pela Polícia Judiciária após comunicação da Interpol. Por outro lado, sabemos que na família há um número assombroso de abusos, pelo que não há qualquer dúvida de que este é um problema transversal. Sabemos também que é dificílimo para as vítimas denunciar. Chocados, vemos os depoimentos dos sobreviventes dezenas de anos depois. No caso das vítimas de Itália e da Austrália, foi doloroso ver que de facto já haviam decorrido muitos anos mesmo. Homens feitos, com cinquenta ou sessenta anos, alguns deles a chorar, que tinham conseguido localizar-se e contactar uns com os outros dezenas de anos depois dos crimes. 

Vidas destroçadas, e nem todos foram sobreviventes. Alguns suicidaram-se devido à dor profunda que sentiram.

Em Portugal, tivemos o caso Casa Pia, que conduziria a uma reflexão sobre as instituições totais e que se veio a concluir serem inadequadas ao desenvolvimento saudável de uma criança, pois os riscos e as desvantagens são largamente superiores a eventuais benefícios.

Na sequência dos múltiplos crimes apurados, com dezenas de vítimas em que não foi possível iniciar o procedimento criminal devido à natureza sem-pública dos crimes, por já terem nessa altura as vítimas mais de 16 anos e meio, houve ampla discussão não apenas no nosso País como a nível europeu, tendo culminado na adopção de Directivas da União Europeia sobre exploração e abusos sexuais de crianças, quer na aprovação da Convenção do Conselho da Europa sobre a prevenção e protecção das crianças contra a exploração sexual e abuso sexual, mais conhecida por Convenção de Lanzarote.

Nestas duas últimas décadas, a maioria dos crimes sexuais contra crianças passou a ter natureza pública e o regime de prescrição passou a ser mais longo e por isso mais favorável para as vítimas. Na verdade, tendo em conta a dificuldade da denúncia por parte das crianças e adolescentes, o que conduziu à conclusão de que além de ser rara a denúncia, mesmo os casos participados, a maioria não dava origem a qualquer investigação por ter decorrido já o prazo de prescrição, isso gerou uma enorme sensação de injustiça porque se observou uma quantidade considerável de crimes sem qualquer investigação e essa impunidade tornou-se verdadeiramente insuportável.

Entre nós, temos diversos exemplos desta política ambivalente. Mas talvez o mais significativo exemplo dessa titubeante política legislativa seja a previsão da possibilidade de aplicação da figura do crime continuado, norma que constou da grande revisão operada já após o caso Casa Pia e que só viria a ser revogada em 2010, após contestação de ONGs de Direitos Humanos, como a APMJ e com especial menção para a incansável magistratura de influência da então Presidente do IAC, Manuela Ramalho Eanes, que nunca desistiu de procurar convencer o Ministro da Justiça Alberto Martins da injustiça da norma, o que veio a suceder. 

Recordo as muitíssimas diligências que fizemos junto dos Grupos  Parlamentares, designadamente eu e a Conselheira Teresa Féria, como ativistas dos Direitos das mulheres e das crianças, insistindo no sentido da indignidade da norma, e pela necessidade da sua revogação, mas só em 2010 viria a ser revogado o nº 3 do artº 30º do Código Penal, que permitia a aplicação da figura do crime continuado à realização plúrima do tipo legal aos crimes sexuais. 

Porém, não é apenas o legislador que é ambivalente. Nos nossos tribunais tem havido decisões que, não obstante aquela revogação que já ocorreu há nove anos, continuam a considerar figuras de contornos semelhantes, que consistem numa atenuação, ainda que os factos sejam praticados por um pai em relação a um filho ou filha, que tinha o dever de respeitar e proteger. 

Ainda agora, no passado dia 9 de Janeiro foi publicado um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em que se decide pela não aplicação da atenuação com base na tese do crime de trato sucessivo, uma das teses muito semelhante à do crime continuado, que os agressores estão sempre a requerer seja aplicado aos crimes sexuais. 

O TRL não atendeu à pretensão do recurso e decidiu que não deveria ser aplicável a tese do trato sucessivo, que como referi, consiste em considerar um único crime a realização repetida dos factos, se estivermos perante a mesma vítima. Neste caso, o TRL, na senda de um acórdão do STJ, entendeu que isso equivaleria a fazer renascer a figura do crime continuado, o que o legislador afastou com a revisão de 2010, o que é de louvar, porquanto em práticas criminosas que se prolongam no tempo, há indubitavelmente um prejuízo mais profundo para a vítima, que além de lesões físicas que nas crianças são frequentes, fica quase sempre com trauma grave e por vezes irreversível.  

Mas é isto, quase dez anos depois da revogação da norma, os Tribunais continuam a discutir se nos casos de crimes sexuais temos concurso de crimes ou se temos só um, se houver repetição. 

Esta posição de que um pai que, por exemplo, viola a filha ou o filho todos os fins de semana durante cinco anos só pratica um crime de violação é de uma injustiça enorme, não apenas por questões de princípio, visto que a Dignidade Humana não pode ser afectada pela violação, e era isso que se verificava, na medida em que a determinada altura, com essa tese, acabava por ser indiferente para o Direito a violação da criança, mas também porque tem conduzido a sentenças em que as penas são levíssimas e ainda por cima, de tão leves, podem ser suspensas na sua execução. 

Há notícia de vítimas de abusos sexuais na infância com perturbação de stress pós-traumático (PSPT) com sintomatologia muito semelhante à que têm as pessoas que vivenciaram conflitos armados. 

James Rhodes, um pianista que foi abusado desde os seis anos de idade e que escreveu um extraordinário livro (Instrumental), que conta memórias do terror, vergonha, humilhação, angústia e depressão que viveu, mas também de como a música o salvou da morte, diz a determinada altura que “Batalha campal é a melhor maneira de descrever o quotidiano de uma vítima de violação” e que “é muito fácil pensar-se que o abuso termina assim que o abusador desaparece de cena e difícil compreender que esse é apenas o início de tudo para a vítima”.   

Creio que estas duas frases são significativas por serem muito expressivas, mas creio também que, entre nós, muito por causa do processo Casa Pia, mas também devido aos escândalos nos internatos católicos, há hoje, em geral, uma consciência bastante superior à que existia há duas décadas e sobretudo, no essencial, há uma ideia mais aproximada da realidade.  

Sobre as posições ambivalentes nos Tribunais e no Parlamento, quer-me parecer que só são possíveis porque a população ainda não valoriza devidamente o sofrimento indizível destas crianças e adolescentes e as ONG ainda não têm a voz forte que nos outros Países revelam. Daí que os nossos representantes no Parlamento permitam que através de leis menos claras, haja dúvidas quanto à interpretação, e haja algumas decisões judiciais em que as vítimas não são tratadas da forma respeitosa que merecem. 

Em suma, constatamos que a política legislativa tem sido sempre pautada por hesitações no que respeita aos crimes de abuso sexual de criança, que continuam a ser desconsiderados, embora no cômputo geral me pareça que podemos dizer ter havido uma evolução positiva nas alterações legislativas, até pela evolução do Direito Convencional.  

Outro assunto que continua a preocupar-me é a questão da avaliação da perigosidade neste tipo de crimes, que já sabemos hoje reveste particular importância, visto que estes agressores têm elevadas taxas de reincidência. São indivíduos que, não obstante terem consciência plena da ilicitude dos seus actos, têm comportamentos que indiciam a natureza muito específica destas infracções. Os estudos que tem sido possível fazer revelam uma percentagem considerável de indivíduos condenados sem capacidade de empatia ou com fraca ressonância afectiva, ou até com perturbação da personalidade, designadamente psicopatia, que agem indiferentes ao sofrimento das vítimas, com um nível de perversidade e manipulação em maior percentagem também, e que não patenteiam arrependimento. Daí que tendam a repetir os crimes, com um comportamento de tipo compulsivo, que sem significar imputabilidade diminuída,  merece uma discussão séria sobre a necessidade de aplicação de medidas de segurança complementares da pena. 

O nosso sistema dicotómico tem impedido esta reflexão, pois está construído sobre compartimentos estanques, mas esta complementaridade existe no Reino Unido e em alguns Estados dos Estados Unidos e creio que com bons resultados.

Falou-se dessa questão na altura em que se pensou no Registo Nacional dos condenados por abuso sexual de crianças e no acesso ao dito, mas depois voltou-se ao quotidiano e o que podemos concluir é que na realidade pouco mudou no sistema.

Os agressores saem e continuam a fazer a sua vida ou seja, a molestar mais crianças, sempre que têm oportunidade. E saem com mais saberes, que aprenderam com os seus comparsas na cadeia ou na Internet. 

Está na hora de colocar a segurança das crianças no centro do combate a este tipo de crimes.

Quero terminar com palavras de esperança. É que, além de haver mais conhecimento sobre estas matérias, há mais ONG, como a Quebrar o Silêncio, por exemplo, há mais cooperação entre elas e sobretudo há um enorme respeito pelo trabalho ciclópico que todos fazemos, no atendimento, no acompanhamento psicológico, na partilha de informação e de experiências.

Mas temos de fazer mais.

Vou enunciar alguns dos objectivos mais urgentes.

Temos de convencer os nossos deputados de que o Estatuto de vítima aplicável à criança se justifica, temos de sensibilizá-los sobre a violência vicária, temos de ser claros sobre a necessidade de termos expressamente estabelecido nesse estatuto o Direito à recuperação psicológica da vítima, temos a questão da residência alternada, em que não podemos admitir a presunção (nas acções sobre responsabilidades parentais), que parte do princípio que estes são casos raríssimos, marginais, sem significado, o que é afinal a nova estratégia, de “negação” do fenómeno. Ou seja, como já não se pode negar, então minimiza-se… Finalmente, temos a avaliação da perigosidade com a necessidade de discussão sobre a medida de segurança e temos as medidas das penas, que todos consideramos demasiado brandas com recurso à suspensão da execução da pena, o que é inaceitável face ao elevado desvalor da conduta pelos enormes danos físicos e psicológicos que causa. 

Por consequência, temos de nos juntar para fazermos um trabalho de sistematização. Tenho a certeza que neste como noutros assuntos da maior importância, as parcerias são essenciais.  

E as ONG de Direitos Humanos, pela sua proximidade com as vítimas, são insubstituíveis na promoção dos Direitos que queremos ver respeitados.

Mais, valorizar as ONG de apoio às vítimas e aos sobreviventes de abuso é indispensável pois não se consegue avançar sem a sua contribuição inestimável, como aliás já é reconhecido em múltiplos tratados internacionais, designadamente a Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e protecção da criança contra a exploração e o abuso sexual (Convenção de Lanzarote).

As mudanças necessárias têm de ser transformadoras. 

Não negamos as vantagens da articulação entre entidades oficiais, mas sabemos que isso não é suficiente.

É indispensável uma verdadeira cooperação entre o Estado e as ONG para eliminar a violência, designadamente esta mais insidiosa, a violência sexual, e só as ONG sabem verdadeiramente cooperar.

Por isso, deixo este desafio da valorização da importância das ONG de Direitos Humanos, na definição de políticas públicas de combate à violência sobre as crianças por estar profundamente convencida que é este o caminho. 

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