A Prevenção dos maus tratos em tempo de Pandemia

Iniciou-se hoje o Mês da Prevenção dos maus tratos na infância. 

Foi em Abril de 1989 que uma avó do Estado da Virgínia nos EUA colocou no seu carro um grande laço azul para denunciar a indiferença a que tinham sido votados os seus apelos à intervenção das autoridades, por saber dos maus tratos constantes que eram exercidos sobre os seus netos, um dos quais acabaria por morrer devido à violência perpetrada pelos pais.  Na sequência do enorme movimento que se gerou, o laço azul passou a ser associado à prevenção da violência contra as crianças e em Abril costumamos assinalar, como em muitos Países do mundo, essa efeméride trágica para lembrar a importância da prevenção. Só prevenindo conseguiremos evitar o sofrimento e tem sido através de Campanhas destinadas à consciencialização da necessidade de investir cada vez mais na Defesa da Criança, que temos agido com esse propósito. Todavia, continuamos a ser interpelados por notícias sobre espancamentos e toda a sorte de abusos, inclusive, sexuais sobre crianças cuja vulnerabilidade, por vezes, só entendemos quando sabemos da violência extrema a que são sujeitas…

Coincidência ter sido em 1989 que aquela avó decidiu gritar em silêncio a sua dor. Costumo dizer que foi um ano especial, tão doloroso quanto mágico também, pois houve um conjunto de acontecimentos que marcaram a Humanidade. 

E os mais relevantes tiveram lugar em Abril e em Novembro. Os primeiros, em Abril, não correram bem, pois além do homicídio que conduziu aquela avó à iniciativa do laço azul, houve a revolta na Praça Tian-an-Men na China, que também não terminou bem; mas, em Novembro, houve a revolução de veludo na Checoslováquia, a queda do Muro de Berlim e a aprovação pelas Nações Unidas da Convenção sobre os Direitos da Criança, que viria a ter uma adesão quase universal e que vigora desde 1990 em múltiplos Estados. 

Portugal foi dos primeiros Países a ratificar a Convenção e tem feito um caminho que se pode considerar de referência, multiplicando-se em acções em defesa da Criança, seja a nível estatal, quer por iniciativa da sociedade civil.  

O Instituto de Apoio à Criança nascera seis anos antes, criado por Manuela Eanes e João dos Santos, na sequência desse enorme movimento iniciado por médicos, juristas e outros profissionais que queriam combater a violência e elevar o Estatuto da Criança, reconhecendo-lhe a sua autonomia como sujeito de Direitos. 

Trinta anos depois da aprovação da Convenção da Criança, a violência interpessoal continua a ser preocupante porque persistente a nível global. Antes da pandemia do COVID 19, a OMS considerava-a  o maior problema de saúde pública do mundo, por provocar um número elevado de vítimas sendo a maior causa de morte em diversos pontos do planeta.

Entre nós, apesar de termos já por esse País fora mais de trezentas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, o certo é que continuamos a apresentar um número elevado de casos de violência. Durante diversos anos, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens, em parceria com muitos Municípios e em associação com ONG, como o Instituto de Apoio à Criança e a Associação de Mulheres contra a Violência, coordenou iniciativas que decorriam durante todo o Mês de Abril, designadamente nas escolas,  por forma a evitar tragédias como as que ciclicamente nos lembram a enorme fragilidade das crianças.

Este ano vai ser necessariamente diferente. 

Devido à declaração de Estado de Emergência, que conduziu ao encerramento das escolas, a Campanha para Prevenir e Combater os maus tratos, irá ser realizada sobretudo utilizando os meios das novas tecnologias. Queremos chegar às famílias e às crianças, mas estas formas inovadoras são, indubitavelmente mais distantes.

Por isso, não podemos deixar de estar mais inquietos, porque sabemos todos que para algumas crianças, a casa não é o seu porto seguro. António Guterres disse há pouco tempo, no início de Março, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, numa mensagem a propósito da violência doméstica, que a casa era para muitas mulheres e crianças o lugar mais perigoso.

Para essas crianças, o ambiente protector é muitas vezes a escola e apesar do esforço dos professores, que se têm desdobrado em acções que tornam o quotidiano das crianças em geral, mais acompanhado, torna-se ainda assim, mais  difícil para eles detectar e intervir. 

Outro dos grandes apoios das crianças vítimas de violência como sabemos, são os avós e disso dá conta a história que contei no início. Ora, esta epidemia, exige que estejam distantes e mais uma vez estas crianças irão ficar mais desprotegidas e entregues a si próprias.

Há crianças que sofrem toda a sorte de violências e o confinamento agrava esses riscos. Claro que o perigo será mais elevado em situações de conflito familiar grave ou em casos em que já havia contexto de violência doméstica. 

E nestes casos temos de ser particularmente cautelosos, pois também há perigo agravado mesmo quando estão reguladas as responsabilidades parentais, sobretudo em regimes de guarda partilhada, que não deveria vigorar sempre que há notícia de violência. Lembrar-se-ão decerto, pela brutalidade chocante de que se revestiu, do sucedido no Seixal, no ano passado, com aquela criança de apenas dois anos que foi assassinada pelo pai que depois se suicidou e que antes também matara a avó materna, a quem arrancou dos braços a filha a quem tirou a vida.  

É uma espécie de violência que ocorre menos frequentemente, mas que, pela sua perversidade, não conseguimos esquecer. No passado mês de Dezembro, decorreu em Lisboa um Encontro Internacional que foi organizado pelo Instituto de Apoio à Criança, Polícia Judiciária e ICMEC (International Center for Missing and Exploited Children), em que participaram cerca de 40 ONG de 29 Países e ficámos a saber que foi um caso dessa natureza que deu origem, por exemplo à Organização não Governamental Suíça que busca Crianças Desaparecidas.

São casos a que os especialistas chamam de violência vicária, porque o agressor se dirige à Criança, embora visasse atingir a mãe, ex-cônjuge a quem, por vezes, nunca se perdoou a separação.   

Durante a minha vida profissional, tive alguns casos destes, que obviamente jamais esquecerei.    

Neste mês da prevenção dos maus tratos, em que se costumam divulgar e promover os Direitos da Criança, temos de ser criativos e exigentes e encontrar diferentes formas de chegar às crianças, que além da ansiedade que sentem devido à Pandemia, podem sentir-se inseguros, caso vivam em contexto de violência.

Temos de transmitir-lhes apoio e mostrar a nossa preocupação, para que se sintam protegidos. 

Outra situação que deve merecer a nossa atenção diz respeito às crianças e jovens que vivem em instituições. 

Nesta altura de confinamento, muitos jovens serão tentados a fugir e sabemos como ficarão ainda mais expostos à violência, designadamente à exploração sexual.

Seria importante que lhes fosse explicado pacientemente os enormes riscos que correm, caso fiquem na rua, sem qualquer tipo de protecção.

Mas ainda seria mais valioso se conseguíssemos aproveitar esta pandemia para desinstitucionalizar, colocando algumas crianças e jovens em famílias de acolhimento, preparando famílias que se mostrem disponíveis para ficar com eles neste momento particularmente difícil para a Humanidade.

Uma campanha nos meios de comunicação social seria talvez uma forma adequada de, através da empatia, procurar encontrar famílias solidárias com estas crianças e jovens que não tiveram o calor de uma família que lhes desse um ambiente tranquilo e acolhedor. O amor também pode nascer em tempo de pandemia justamente porque os valores da solidariedade e da bondade podem ser despertados nestes momentos de catástrofe.

Os casos dos refugiados sírios, por exemplo, provocaram emoções positivas e uma enorme onda de sentimentos de solidariedade surgiu entre muitos jovens que quiseram ajudar perante as condições desumanas que viram.

Estou certa que, se uma campanha mostrar a solidão interior que essas crianças e jovens vivenciam em instituições onde muitas vezes nem sequer conseguem fazer amigos, onde a permanência se prevê sempre temporária, mas por vezes dura uma eternidade, muitas famílias quererão ajudar estes “filhos de ninguém”, como lhes chamava Catalina Pestana.     

Vivemos momentos únicos em que temos de repensar a nossa sobrevivência enquanto seres humanos sociais, em que é importante a ideia da coesão e da solidariedade. Temos de pensar que se impõem ideias comuns sobre as nossas prioridades. 

Como dizia há pouco o General Ramalho Eanes, “o Estado não pode ser mínimo”, pois têm de ser asseguradas funções essenciais, como a Saúde, a Segurança, a Justiça e a Protecção Social. Mas há também responsabilidades que os cidadãos têm de assumir. A sociedade civil tem aqui um papel insubstituível. 

O Instituto da Criança nasceu há 37 anos e continua a sua missão, através dos seus serviços, designadamente do SOS Criança, que desde 1988 atende crianças que precisam de ajuda. 

A chamada é gratuita, anónima e confidencial. Uma equipa de profissionais experientes está disponível para informar, esclarecer, apoiar. Ligue  116111.

Como dizia Jorge de Sena, na “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, temos de saber merecer “a Honra de estarmos vivos”.   É isso que nos propomos fazer.

Pela Dignidade das nossas crianças! 

 

Lisboa, 1 de Abril 2020

Dulce Rocha

Comentários sobre “A Prevenção dos maus tratos em tempo de Pandemia

  1. Se agilizassem os processos de adoção muitas crianças teriam um lar para melhor enfrentarem as agruras da vida. Não há um empenho verdadeiro e profissional nas pessoas que estão à frente destes processos. Sou mãe de uma filha que se candidatou à adoção de uma criança até aos 5 anos de S. Tomé e Príncipe. Quando tudo estava encaminhado nesse sentido recebeu uma chamada na véspera de Natal(2019) a comunicarem friamente q S. Tomé tinha cancelado em setembro a saída de crianças para adoção. Solução? Começar o processo desde o início. Isto é de organização capaz de estar à frente de assunto tão delicado?

    Responder

  2. Sou educadora de Infância desde 1989, tenho 57 anos contratada e no activo em sala de Jardim de Infância.
    Não concordo com as medidas ontem divulgadas pelo governo para as creches e tudo leva a crer que para os Jardins de Infância serão as mesmas ou muito idênticas!
    Isto não é viável, nem em creche nem em jardim de infância… Só faltou dizerem para pormos as crianças em gaiolas!
    Quem faz estas directrizes não percebe nada de nada, na creche e jardim de infância não existem mesas individuais para cada criança,muito menos fazer com que todas as crianças fiquem viradas para a frente, distanciadas 2 metros umas das outras… Sinceramente, crianças tão pequeninas que só querem brincar, estar com os amigos, estar connosco… A creche e o jardim de infância meus senhores e senhoras das decisões políticas, são realidades de afectos, é assim que funcionam estes espaços! Não o sabendo, deviam consultar e falar com quem lida e está com as crianças todos os dias no terreno!
    Já agora devo informar estas senhoras que ontem nos apresentaram as ditas medidas, que quem trabalha nas creches e jardins de infância são pessoas com a denominação de educadores de infância e auxiliares de acção educativa.
    Por último, era bom, virem ao terreno/salas das creches e jardins de infância exemplificar ou seja “ensinarem-nos” a pôr em prática estas medidas que ontem anunciaram!
    Digam-me lá senhores governantes e seus conselheiros… Vou simplesmente dizer aos meninos e meninas, afastem-se de mim e dos vossos colegas, fiquem aí bem quietinhos!?
    Eu não o consigo fazer e digo mais, isto vai deixar sequelas profundas nas nossas crianças indefesas!
    O que têm a dizer as ditas entidades que deveriam proteger as nossas crianças!? A privação de afectos é tortura, negligência…é violação dos Direitos das Crianças. Onde se encontra aqui o Superior interesse da CRIANÇA!?

    Maria do Carmo Gil

    Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.