Os meninos acolhidos e os jovens internados

Eu sei que para as crianças as regras são sempre diferentes. 

Sim, também sei que os pressupostos são diferentes e até que as causas para estarem dentro de centros onde não estão os seus pais também são muito diferentes. 

Sim, claro, sei tudo isso. Mas também sei que merecem uma protecção especial. 

Não foi sempre assim. Houve tempo em que os pais eram donos dos filhos e podiam maltratá-los. Nesse tempo, por outro lado, havia crianças que eram encarceradas nos mesmos lugares destinados aos adultos.

Foi a evolução da cultura humanista de reconhecimento dos Direitos da pessoa e da sua Dignidade, associada  à evolução do conhecimento e da Ciência que veio consagrar Direitos específicos para as crianças, reclamando para elas uma protecção especial, devido à maior vulnerabilidade que a realidade patenteava e simultaneamente aos avanços da ciência que reclamava por um lado apoio, por exemplo nos casos em que eram vítimas de algum tipo de violência e por outro, um tratamento menos severo, nos casos em que praticassem um facto que a lei penal qualificasse como crime… 

Acreditem que hesitei bastante em escrever este artigo, porque quero crer que tudo foi pensado, ponderado, avaliado, mas depois pensei nos milhares de crianças e jovens que já ouvi em todos os Tribunais onde exerci funções, em particular no Tribunal de Menores de Lisboa, pensei nas crianças e nos jovens-vítimas da Casa Pia de Lisboa, e que conheci melhor enquanto fui membro do seu Conselho-Técnico-Científico, pensei em todos quantos buscam apoio nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens e na Comissão Nacional, e pensei em todas as crianças que contam as suas vidas, através do SOS Criança, e nas outras todas que são ajudadas por outras ONG parceiras do Instituto de Apoio à Criança e que fundaram a Rede Crescer Juntos. 

E pensei que sou responsável por pensar mais nelas, porque as ouvi directamente ou através dos inúmeros relatos dos profissionais que ao longo destes anos todos trabalharam comigo e me confiaram as histórias dos meninos e meninas que acompanharam.

E pensei que lhes devia isto. 

Partilhar convosco os meus pensamentos sobre estas crianças e jovens que não estão confinados em casa, mas sim nas instituições, pode ser importante. Porque, como diz o Papa Francisco, o pior mesmo é ficarmos indiferentes. 

Além disso, estamos em Abril, que é o mês da nossa Liberdade, da nossa Constituição e da Primavera, e embora este ano tenha sido também do confinamento, a esperança permanece, apesar de tudo.

Mas hoje estou com medo. Além do medo do Covid, que creio temos todos, estou com medo das notícias que nos dizem que há meninos infectados numa instituição de acolhimento. Verdade. Estava preocupada há um mês, inquieta há quinze dias. Com esta notícia, tenho medo que fiquem doentes, as pobres crianças, que foram retiradas às famílias que não puderam ou não quiseram ou não souberam cuidar delas como era esperado. 

Ouvi ontem na televisão que havia quatro crianças num Centro de Acolhimento que estariam positivas para o Covid 19 e que a mais nova tinha apenas 4 anos.

Sei que os mais novos têm sido mais poupados, mas já há notícia de crianças e jovens que foram contagiados com o coronavírus e que têm estado hospitalizados com situação grave. Ainda há poucos dias vimos uma reportagem sobre a vida das crianças e jovens que contraíram a doença e que estão no Hospital de Dona Estefânia e ficámos a saber que muitos tinham estado doentes com quadro grave e que alguns ficarão certamente com sequelas cuja dimensão ainda hoje se desconhece em toda a sua extensão.  Por consequência, com estes riscos, não consigo ficar tranquila com isto. Foi uma notícia que me deixou apreensiva.

E também estou bastante preocupada com a situação dos jovens internados em Centros Educativos.

Dir-me-ão que a área desses estabelecimentos é maior, e que por isso não há risco tão elevado de contágio como nas cadeias e que só lá estão os verdadeiros “correccios”, aqueles a quem chamam de “casos perdidos”, por já se ter tentado “tudo” e nada ter resultado. Pois. Não estou convencida.

Durante o tempo em que exerci funções nos Tribunais, achei sempre que havia uma grande tendência para encarcerar devido à repetição. 

Poderá ter havido alterações significativas, poderei estar eu a ser a costumada “pessimista irritante”, mas não creio.

O que sei é que me apercebi muitas vezes que depois do CD e dos ténis, à terceira, que era com frequência o telemóvel retirado da mão de outro jovem, lá vinha a acusação por roubo, o que, associado às ocorrências anteriores, às burlas dos transportes, ao abandono escolar e à ausência de “família estruturada”, conduzia à conclusão de que a melhor solução era mesmo o internamento.

Lembrei-me desta sequência muitas vezes, pois temos no Instituto de Apoio à Criança um Projecto excelente que se chama “Educar e Formar para Inserir”, que tem sido um sucesso e que tem apoiado centenas de jovens para quem a escola já nada significava, e que estavam muitos deles em conflito com a lei, já com Processo Tutelar Educativo. Os jovens que frequentam esta acção, ganham novo ânimo, abraçam com entusiasmo novas aprendizagens e temos conseguido demonstrar que é possível interromper percursos marginais. Assim saibamos envolvê-los em projectos educativos inovadores, com acompanhamento personalizado, com treinos de competências pessoais e sociais e sempre que necessário com apoio psico-terapêutico. 

Temos um sistema prisional que vem sendo criticado não apenas a nível nacional como a nível internacional, mas apesar de não ser tão visível, o nosso sistema relativo aos jovens internados também merece reservas. 

Há pouco mais de um ano, quando a OVAR (Obra Vicentina de Apoio ao Recluso) foi galardoada com o Prémio dos Direitos Humanos, o seu Presidente Manuel Almeida Santos referiu que 80% dos presos foram condenados por crimes relacionados com o tráfico de droga, que aliás era um crime que não existia como  tipo legal há pouco mais de 50 anos. Entre esses, estão obviamente os furtos, alguns deles qualificados, e os roubos por esticão, em que não houve danos físicos, sendo certo que houve muitos casos de reincidência, de tal forma que Almeida Santos chega a falar em penas sucessivas, que se traduzem afinal em verdadeiras prisões perpétuas. Faz sempre afirmações muito fortes e chocantes acerca das condições prisionais, tendo progressivamente endurecido as suas críticas, e o certo é que foi reconhecido o seu trabalho de mérito, visto que a sua Associação foi agraciada com o Prémio dos Direitos Humanos da Assembleia da República, em Dezembro de 2019. 

Curiosamente, foi há justamente um ano que escrevi sobre as prisões e as penas e me referi às declarações do Presidente da OVAR, que soube ter estado agora de novo na linha da frente ao fazer uma carta aberta no sentido da libertação de alguns presos, em linha com a posição assumida pelas nações Unidas, designadamente a Alta Comissária para os Direitos Humanos Michelle Bachelet.

Também subscrevi há pouco tempo uma carta aberta com colegas meus, Magistrados do Ministério Público, a propósito de declarações prestadas recentemente por um dirigente sindical que discorda das medidas de clemência e de indulto atribuídas a alguns condenados, com vista a prevenir a propagação da pandemia nas cadeias.   

Numa altura em que ainda choramos a partida do escritor Luís Sepúlveda, que morreu por Covid 19, aproveito para homenagear ambos, Michelle Bachelet e Sepúlveda,  figuras maiores de uma Pátria sofrida, a “longa pétala do mar”, como lhe chamou Pablo Neruda e agora Isabel Allende recordou no seu belo livro dedicado cuja capa tem fotos do navio Whinipeg, que transportou para o Chile os republicanos derrotados por Franco na Guerra Civil de Espanha. 

Luís Sepúlveda contou, talvez na última entrevista que deu antes de adoecer, que estava preso numa cadeia do Chile, na sequência do Golpe de Augusto Pinochet, quando soube que em Portugal tinha tido sucesso a nossa Revolução dos cravos. 

Os torcionários disseram-lhe: “Vocês acabaram de ganhar em Portugal”, e foi assim que soube que tinha acabado a Ditadura que entre nós vigorou durante quarenta e oito anos.

Para a minha geração, Abril tem de ser assinalado, porque esta é a data em que a Liberdade, a Igualdade, a Cidadania passaram a fazer parte das nossas vidas e ganharam um significado mais consistente e profundo.

Em particular quer-me parecer que as mulheres devem comemorar Abril. Porque viram o seu estatuto elevado a um patamar de igualdade, elas que eram tratadas como “menores”, como dizia Isabel Magalhães Collaço. No Direito da Família passaram a ter um papel de igual valor ao do marido, até então, o “chefe de família”, a quem se devia obediência. Um conjunto de profissões abriram-lhes as suas portas. Recordo que as mulheres magistradas devem ao 25 de Abril o ingresso numa profissão que lhes estava vedada. 

Nestes 47 anos tivémos Magistradas, Deputadas, Ministras, uma Primeira-Minsitra, e temos cada vez mais médicas, enfermeiras, polícias, investigadoras, muitas mulheres doutoradas, Directoras de faculdades, e continuamos a ter escritoras e poetas e pintoras, e artistas. E neste último mês, descobrimos a enorme falta que nos fazem os nossos cuidadores, na sua grande maioria cuidadoras, compreendemos melhor o significado da palavra cuidar e do valor que tem nas nossas vidas a solidariedade.

Dir-me-ão que isto não vem a propósito, porque estive a falar de prisões e de Centros Educativos, e que estes até são diferentes, que não são cadeias e que as medidas não são penas.

Pois, é verdade, por vezes deixo-me levar pelo pensamento, mas creio que tudo está interligado.

Porque o quero mesmo é falar de liberdade e de solidariedade. Quanto às diferenças entre as cadeias e os centros, claro que existem, mas no fundo para quem lá está e não pode sair, ambos são, na sua essência, centros de detenção. 

E nos centros educativos estão jovens privados de liberdade. Não há forma mais branda de dizer isto. 

Creio que vivemos num momento muito especial.

Por um lado, seria bom que o aproveitássemos para repensarmos o nosso sistema de protecção que apesar de tudo continua a ser tão institucionalizador.

Não seria altura para se reverem medidas em que crianças foram retiradas aos pais com grande contestação? Estou a lembrar-me do caso da mãe Liliana, em que Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu. E casos de crianças cujas mães repetidamente referem terem sido elas próprias vítimas de violência? 

E não haverá casos em que a família alargada se dispõe a receber as crianças? 

E as famílias solidárias? O nosso País tem larga tradição de acolher crianças. Há uns anos, participei numa cerimónia, no CCB em que fiquei a saber que durante e a seguir à 2ª Guerra Mundial, tinham sido acolhidas no nosso País mais de 5 mil crianças austríacas através da Cáritas Europa.

Estou convencida que com uma Campanha a nível nacional, haveríamos de conseguir congregar esforços, e muitas famílias solidárias se mostrariam disponíveis para acolher meninos e meninas que não têm família em condições de acolhê-los.

A SCML tem já um programa destinado a preparar famílias de acolhimento.   Creio que seria oportuno perguntar-lhes se estariam dispostas a receber estas crianças.

Entendo que as famílias de acolhimento terão um grande papel em alternativa à institucionalização.

Tenho dúvidas no que respeita às crianças recém-nascidas, em que o destino pode ainda ser a adopção. Nestas situações, o ideal seria agilizarmos essa resposta, sem que a criança tivesse de vivenciar rupturas  afectivas. As descontinuidades nas ligações afectivas devem ser evitadas sempre que possível. 

Mas estou incomodada com a notícia de haver uma criança de quatro anos infectada com Covid 19. 

A desinstitucionalização que esperamos há tanto tempo poderia começar agora. Sei que a Comissão Nacional está atenta, porém, talvez fosse uma excelente oportunidade para, à semelhança do que já sucede com as ONG de Mulheres, dar a voz às ONG de Crianças.

E os jovens privados de liberdade? Tenho a certeza que haverá um conjunto de jovens que não pertencem ali, jovens que só precisam de uma mão amiga que os ajude a encontrar o seu caminho de respeito pelo outro e por si próprios.

Está na hora de frequentarem os nossos Centros de Inserção e Desenvolvimento Juvenil. Aí poderão beneficiar dos programas de treino de competências do Instituto de Apoio à Criança e de certeza que em breve optarão por vidas novas recuperando uma liberdade feita de responsabilidade.

Dentro de dias, no 25 de Abril, se estas ideias fossem aceites, comemoraríamos mais liberdade ainda e Maio surgiria com mais luz, com a luz da esperança. 

Mas ela só se concretiza com liberdade vivida no respeito pelos direitos e no meio da confiança e só em liberdade se concretizará a verdadeira justiça, fundada na dignidade humana, porque só estes valores conduzem a um futuro responsável. 

Tenho, pois esperança que os meninos e meninas acolhidos e que os jovens internados possam sair mais cedo em segurança e com confiança num futuro mais digno, reparador, e que conduza à sua recuperação. 

Vamos todos ajudar?

Deixe um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.