A criança vítima e a importância da Lei

O primeiro artigo que publiquei este ano para o Blogue foi justamente sobre a Criança e o Estatuto de vítima.

Nesse texto falava sobre as múltiplas leis que vinham sendo aprovadas em Portugal e sobre as Convenções internacionais entretanto ratificadas. 

Houve tempo em que pensei que as leis eram quase omnipotentes, mas foi o tempo que me ensinou que era necessário todo um sistema favorável à sua concretização. Todavia, a consagração legal continua a ser importante por diversas razões óbvias, desde logo pela legitimação que permite, mas sobretudo porque podemos sempre invocá-la em caso de incumprimento… 

Claro que há princípios que por serem muito importantes, terão de ser proclamados não apenas pelo Direito internacional como pelo Direito interno. É o caso das Convenções, por exemplo, como a Convenção contra a Tortura, a Convenção sobre os Direitos da Criança ou a Convenção Europeia para a Prevenção e o Combate à Violência Doméstica. Não obstante o nosso País ser sempre dos primeiros Países a ratificar as leis convencionais, assistimos depois a uma dificuldade enorme em transpô-las para as nossas leis ordinárias, o que costuma gerar decisões contraditórias nos Tribunais.  

Sobre a questão do conceito legal de vítima, foi recentemente publicado um Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que reconhece dever ser considerado vítima o filho de uma mulher que sofreu violência doméstica perpetrada pelo companheiro, apenas porque assistiu à violência física praticada pelo agressor contra sua mãe.

A Magistrada do Ministério Público de Faro, Rute Almeida,  entendeu recorrer do despacho judicial que indeferira a tomada de declarações para memória futura ao jovem, que devido aos danos emocionais que sofrera, ao ver repetidamente a sua mãe a ser espancada, deveria ser incluída no conceito de vítima previsto no artº 67º-A do Código Processual Penal.

As alegações que produziu, fundamentadas e seguras, não apenas se basearam na análise da legislação nacional, mas também no Direito Convencional, designadamente na Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à Violência Doméstica, sustentando a sua argumentação em elementos da Psicologia do desenvolvimento e ainda em circunstâncias posteriores ao crime, que demonstram a agressividade do arguido, que entretanto foi preso preventivamente pela prática de um homicídio qualificado, havendo ainda referência à reincidência no Acórdão. 

Tudo foi relevante para convencer o Tribunal superior, que ponderando todos os elementos, deu provimento ao recurso. 

Foi justamente para não haver necessidade de interposição de recursos em situações desta natureza que me associei à iniciativa da pintora Francisca de Magalhães Barros, na esperança de que os nossos Deputados façam agora uma reflexão mais profunda, com novos dados entretanto recolhidos sobre a necessidade imperiosa de uma clarificação da Lei, que atribua a inequívoca qualidade de vítimas a estas crianças cujo depoimento é, com frequência, fundamental para o apuramento da verdade. 

Este exemplo das “declarações para memória futura” é apenas um dos direitos que estas crianças nem sempre vêem assegurados enquanto não lhes for reconhecido o estatuto de vítima de forma que não permita interpretações contraditórias. 

Mas há outros direitos, como o direito a beneficiar de psico-terapia para ver assegurada a sua recuperação psicológica, ou o direito a ser indemnizada ou até o mero direito a ter também ela dispositivo que permita assegurar a distância do agressor, conhecido como “botão de pânico”.

Uma coisa é certa: não podemos aceitar que as crianças se sintam aterrorizadas em audiência, porque isso pode ter consequências negativas para o seu depoimento, mas sobretudo porque o julgamento não deve revitimizá-las, mas sim ter um efeito reparador que contribua para a sua recuperação psicológica, nos termos do disposto no artº 39º da Convenção sobre os Direitos da Criança e para não prejudicar o desenvolvimento integral,  que o artº 69º da Constituição da República estatui como dever do Estado e da sociedade.

A violência doméstica tem um impacto muito traumático para estas crianças, que apresentam sintomas prolongados de danos  não apenas psicológicos, mas também fisiológicos.

O filme de Xavier Legrand mostra bem como a violência doméstica exercida pelo pai contra a sua mãe aterrorizava o pequeno Julien. Mas durante a minha vida profissional tive muitos destes meninos, em pânico, sem perspectivas de futuro, em que o desespero imperava.

Elisabete Blackburn que ganhou o Prémio Nobel da Medicina em 2009, por ter descoberto a influência da diminuição do tamanho dos telómeros das células na maior vulnerabilidade às infecções, foi, a pedido de uma sua colega médica, Directora de um orfanato, estudar e comparar a dimensão dos telómeros das crianças e concluiu que de facto estas crianças que vivem em condições adversas, muitas vezes portadoras de stress pós-traumático, por terem vivido em contextos de extrema violência, apresentavam telómeros mais curtos e que por isso tinham menos factores de protecção e menos imunidade que as demais crianças.  Daí que, como a observação empírica de muitos profissionais já antevia, tenha sido comprovada, agora cientificamente, a maior vulnerabilidade destas crianças ausentes de afecto e cuidados privilegiados por figuras de referência, e muitas vezes vítimas invisíveis de violência doméstica.   

Desde então, muitos estudos e inquéritos de vitimação têm mencionado estes efeitos tão negativos para o desenvolvimento das crianças expostas à violência doméstica, sendo contabilizadas mais doenças quer do foro mental, e que conduzem, por exemplo, a uma percentagem elevada de suicídios, quer fisiológico, designadamente  doenças oncológicas, pelo que não podemos ficar olimpicamente indiferentes a esta pandemia que em Portugal e no Mundo tem provocado tanta dor, angústia e desespero.   

É por isso que a Lei tem de ser clara e deve consagrar expressamente este conceito mais alargado que corresponde ao conhecimento científico actual sobre esta matéria tão complexa quão devastadora.

Sabemos que alguns Deputados estavam convencidos que a lei já consagrava o conceito de vítima que defendemos, mas a vida tem demonstrado que não é suficientemente clara, e que pelo contrário, nem sequer é maioritária nos nossos Tribunais a posição agora consagrada pelo inovador Acórdão que temos vindo a analisar, em que foi  Relatora a Desembargadora Beatriz Marques Borges.  

O Instituto da Criança tem vindo a defender a necessidade de uma alteração legislativa que garanta mais protecção a estas vítimas menos visíveis, mas mais vulneráveis e que merecem mais segurança nas suas vidas, tendo este assunto sido discutido numa Reunião de Direcção, que deu origem a um comunicado. Daí que façamos um novo apelo no sentido de uma maior sensibilização para este assunto, pois temos a certeza que só o desconhecimento tem permitido a indiferença de alguns de nós. 

A criança merece uma vida segura, tem direito à protecção e à não-violência, e só o respeito pela criança e pelos seus direitos cumpre o seu superior interesse.    

A Petição pública lançada pela pintora Francisca de Magalhães Barros no Dia da Criança conseguiu associar personalidades conhecidas como Manuela Eanes, Isabel Aguiar Branco, Rui Pereira, Garcia Pereira, Carlos Poiares, Nuno Markl, Jessica Atayde, Dalila Carmo, Ana Galvão, e em pouco mais de um mês reuniu quase 35 mil assinaturas, o que revela a enorme adesão a esta causa que é de todos quantos querem verdadeiramente que a protecção e a segurança sejam garantidas.

Em nome da Dignidade e da Justiça.

Comentários sobre “A criança vítima e a importância da Lei

  1. Muito tempo já se passou em que as crianças e jovens não viram os seus direitos serem reconhecidos e defendidos. Como se pode esperar civismo nas gerações futuras se as mesmas não forem ouvidas na infância e juventude, sobretudo para relatar o que deve ser corrigido e não é justo? Perdem totalmente a confiança naqueles que as devem proteger, primeiro dentro das famílias, depois nas instituições. Além disso a saúde mental precede todo o funcionamento humano, seja físico, social ou profissional. Está bem estudado que as crianças que presenciam violência doméstica não têm perfeita saúde mental. Este é um tema de prioridade nacional que urge reiniciar. Saúdo quem tem autoridade e oportunidade para o dinamizar e que agora sabe não pode mesmo parar.

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