A violação não é assunto privado

Ainda a violência sobre as Mulheres e as crianças e as medidas sempre

adiadas para acabar com ela.

Em Abril, costumo escrever sobre a importância de prevenir e combater a
violência sobre as crianças. Especialmente desde que há uns anos, a
Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens vem assinalando
Abril como mês da prevenção dos maus tratos na infância. Foi com base
numa atitude de uma avó que decidiu viajar com um grande laço azul,
símbolo da côr que cobriu seu neto, falecido na sequência da violência de
seu padrasto.
Todos os pretextos são bons no sentido da consciencialização para este
fenómeno ainda tão extenso e com consequências tão negativas. Por isso,
ainda que Abril me traga outras recordações, obrigo-me primeiro a
escrever sobre a violência infligida às crianças. Por todo o País, muitas
CPCJ e ONG tomam iniciativas nesse sentido, e nestes mais de 30 anos de
Convenção e 40 desde o ano Internacional da Criança, creio que de
alguma forma se generalizou a rejeição e a censura, pelo menos através
das palavras, do mau trato e do abuso infantil. O mesmo não sucede com
as violências perpetradas sobre as mulheres, de forma que decidi alargar o
meu grito de repúdio, mesmo sabendo que só pode ser ouvido pela
escrita, mantendo a esperança de ajudar a que seja feito um caminho
justo.

Já noutros artigos falei sobre os maus tratos em crianças, sobre a sua
extrema vulnerabilidade e sobre as múltiplas formas de crueldade que
vamos sabendo, por vezes só passados muitos anos.
Decorrido um ano sobre o homicídio da menina Valentina, e dois sobre o
da pequena Lara, a minha memória enche-se de nomes de outras crianças
que ao longo dos anos me fizeram exigir medidas mais eficazes contra a
barbárie.
Não me canso de repetir aquela expressão tão forte e sábia do Lloyd De
Mause quando disse que a “História da Criança é um pesadelo do qual só
agora começámos a despertar”.

Todavia, creio que ainda assim, no que respeita à Criança-Vítima, temos
avançado na denúncia e sobretudo na assumpção pelo Estado do dever de
punir os maltratantes. Houve, durante muito tempo, uma incongruência
relativa aos abusos sexuais, que são os mais insidiosos maus tratos, os que
são premeditados, os que são mais dolorosos e repetidos, sobretudo se
forem praticados por alguém dentro da família, que se traduzia na
natureza semi-pública do crime, mas isso foi sendo ultrapassado e
actualmente já temos uma cobertura aceitável em que podemos dizer que
o nosso sistema optou pela natureza pública dos crimes sexuais contra
crianças.
Tem sido muito difícil esta luta.
Muitos não queriam aceitar que a família deixasse de manter a sua
autonomia em relação à queixa.
Houve em 1998 uma alteração em que se admitia que o MºPº poderia
prosseguir a investigação se se entendesse que o interesse da vítima o
exigia.
Foi sempre uma apreciação muito diversa. Lembro-me de um caso em que
se decidiu pôr fim ao processo porque a criança, então com quatro anos,
fora viver com os avós, o que a afastara do perigo de voltar a ser violada
pelo pai que já abusava da infeliz desde os dezoito meses.
Devido a essa defesa intransigente da unidade familiar, vista como um
bem em si mesmo, independentemente do mal que pudesse ser causado,
prolongou-se por demasiado tempo essa visão “romântica”, sem
correspondência e adesão à realidade. Mas em 2001, o clamor começou a
ser audível e foi possível consagrar a natureza pública dos crimes sexuais
contra crianças quando o agressor fosse o pai ou o padrasto, ou tivesse de
alguma forma autoridade sobre a vítima.
Contudo, foi necessário esperar pelo Processo Casa Pia para se reconhecer
que havia “meninos de ninguém”, como lhes chamava Catalina Pestana, e
que o Estado não podia alhear-se do dever de garantir a sua protecção e a
sua segurança, tanto mais que alguns deles estavam precisamente
acolhidos em instituições do Estado.

A Reforma de 2007 veio finalmente consagrar essa natureza pública,
dando assim um sinal de que era inaceitável considerar privado um
assunto, quando o bem jurídico protegido é manifestamente de interesse
público.
Não é isso que sucede no que respeita aos crimes sexuais praticados
contra as mulheres, como explicarei adiante.
Mas mesmo em relação às crianças, persistem incongruências no sistema.
Ainda agora estamos à espera que à criança seja reconhecido o Estatuto
de Vítima quando presencie a violência doméstica.
Alguns deputados entenderam há cerca de dois anos que as normas em
vigor já acautelavam essas situações, mas a prática judiciária veio
demonstrar que se impunha uma redacção inequívoca, por forma a que
não possa haver lugar a qualquer dúvida.
São conhecidos recursos e acórdãos proferidos já após as últimas
alterações legislativas, que demonstram haver fortes divergências no que
respeita à audição da criança, em registo para memória futura, por não
lhe ser reconhecido o estatuto de vítima, quando a violência não lhe tenha
sido directamente dirigida.
Tenho-me apercebido que nem sempre há a consciência da necessidade
de redigir as normas de forma expressa e clara, pois não podemos
presumir a consagração legal de algo que se apresente na estatuição de
um preceito de forma mais ou menos vaga, sobretudo no Direito Penal,
em que não se consentem interpretações extensivas e muito menos
analógicas.
A petição, que reuniu cerca de 50 mil assinaturas, conduziu a projectos
que irão em breve ser discutidos no Parlamento e tenho esperança que
desta vez se alcance o desejado consenso.
Regressando à punição e ao procedimento criminal relativamente à
violência sexual contra as mulheres.

Em meu entender, as normas que temos continuam a desprezar o direito
das mulheres à segurança que é devida a todos os cidadãos num Estado
de Direito.
Na verdade, sob o pretexto do respeito pela autonomia da vontade da
mulher, ignora-se o dever de protecção de um conjunto de bens jurídicos
relevantes, como a Dignidade e a Integridade pessoal, apenas se
mencionando a liberdade de determinação.
Em segundo lugar, ficciona-se que temos um sistema penal justo,
associado a serviços de protecção e de apoio social de qualidade e
também a apoio jurídico e psíquico, se necessário.
Finalmente, presume-se que as mulheres são inteiramente livres e
autónomas e que confiam no sistema de Justiça, de forma que se não se
queixam, isso corresponde à sua vontade esclarecida. Lamentavelmente,
não é isso o que é percepcionado pelas vítimas.
Num inquérito de vitimação efectuado na União Europeia há uns anos,
foram abrangidas 42000 mulheres.
Como em outros inquéritos deste tipo, cerca de um terço respondeu que
já havia sofrido violência sexual, o que é uma incidência elevadíssima, cuja
dimensão se desconhecia até há uns anos atrás. Mas o mais triste e
extraordinário, é que só 10% das que declararam ter sofrido violência,
disse ter apresentado queixa, o que corresponde afinal ao que tem vindo
repetidamente a ser mencionado na sequência dos resultados destes
inquéritos.
Ora bem, as 90% que não apresentaram queixa, referiram causas que têm
necessariamente de ser consideradas, pois não podemos continuar a
ignorá-las e a imaginar as que nos pareciam mais prováveis antes de
conhecermos as conclusões dos estudos e das pesquisas fundadas nos
inquéritos de vitimação.
A primeira causa para não apresentarem queixa é o medo. Os agressores
são na sua esmagadora maioria conhecidos das vítimas e aterrorizam-nas,
com ameaças horríveis sobre a sua segurança e a dos seus entes queridos.

A segunda é o não confiarem no sistema de justiça, receando que irão ser
desacreditadas e que o agressor sairá impune.
Só em terceiro lugar vem a vergonha, mas ainda assim, ela é consequência
do descrédito a que votam o sistema, devido ao facto de estarem
convencidas que irão ser desconsideradas ou desvalorizadas as suas
declarações.
Vamos continuar indiferentes a estes resultados que constituem afinal
verdadeiros apelos à mudança, na medida em que revelam realidades que
não eram conhecidas quando se pensou que a natureza dos crimes sexuais
aconselhava a que dependessem de queixa?
Neste momento, com os conhecimentos entretanto adquiridos, sou
indubitavelmente a favor do crime público.
Nem sempre pensei assim. Quando há 40 anos iniciei a minha carreira na
Magistratura do Ministério Público, aceitava que no caso dos adultos,
deveria a vítima poder decidir.
A vida, porém, viria insistentemente empurrar-me para o entendimento
oposto e hoje, após muitos debates e reflexão, situo-me do lado mais
realista, e não do lado que nega a enorme discriminação das mulheres,
dos que parecem romantizar a violação chamando-lhe relação sexual.
Não, as vítimas jamais lhes chamam isso. As vítimas violadas ficam
aterrorizadas, e sabem bem que não foi por tomar essa forma, que a
agressão deixou de ser particularmente violenta. Houve desprezo, houve
violência, jamais relação.
A violação é um dos crimes mais tenebrosos, mais desumanos e cruéis que
conhecemos. Por isso, é utilizado também em conflitos armados e
representa o que de mais repugnante se verifica em matéria de
desrespeito pelos Direitos Humanos das Mulheres.
A Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à
violência sobre as mulheres completa dez anos sobre a sua aprovação no
próximo mês.

E claramente entende a violação como um crime hediondo, que deve ser
combatido com veemência, de forma efectiva e que não deve depender
de queixa.
A “nuance” introduzida no sentido de dar ao MºPº a possibilidade de
prosseguir no interesse da vítima terá consequências mínimas, porquanto
esse interesse, quando reportado a um adulto, de acordo com os
pressupostos da cultura que está ínsita a toda esta redacção, pode ser um
convite ao silêncio e retira legitimidade ao MºPº em situações em que não
seja óbvio o prejuízo. Ou seja, esta é uma redacção que limita e restringe,
admitindo que só em alguns casos o procedimento e o julgamento têm
fundamento, fazendo-se tábua rasa dos fins preventivos das penas, para já
não falar na retribuição e no fim reparador para a vítima.
Aliás, os direitos da vítima continuam a ser muito desvalorizados no nosso
sistema penal, construído no período Pós-Ditadura e que assentava, até
pela proximidade temporal, na defesa intransigente do arguido, também
ele “vítima” de um sistema opressor até ao 25 de Abril. Decorridos quase
40 anos, e 47 sobre o derrube do regime fascista, creio que será tempo de
rever a forma deficiente e por vezes desrespeitosa como são tratadas as
vítimas. Parece que entre nós, paradoxalmente, só quando deixa de
existir, a vítima de violação ganha direitos, designadamente em casos de
consequências trágicas e irreversíveis, como o suicídio ou a morte.
Não podemos conformar-nos com estas concepções anacrónicas que
ignoram, como já referi, os novos dados sobre os crimes sexuais
praticados sobre as mulheres. Aliás, entendo que fazem uma
interpretação muito duvidosa do disposto na Convenção do Conselho da
Europa, que faz dez anos dentro de dias. Esta Convenção, mais conhecida
por Convenção de Istambul, que convoca os Estados-parte para um novo
paradigma que passa pela assumpção das suas responsabilidades
enquanto garantes da segurança das suas cidadãs, preconiza um conjunto
de medidas preventivas, designadamente ao nível da formação de
profissionais e também a disponibilização de centros de apoio social e
psico-terapêutico e representou um enorme avanço no reconhecimento
da necessidade de medidas específicas no sentido da erradicação das
múltiplas discriminações existentes.

Lamentavelmente, a Turquia, País anfitrião que acolheu as inovadoras
normas de Direito Convencional, pratica o oposto do que está no Tratado
e o Presidente Erdogan foi há dias protagonista de um claro tratamento
discriminatório da Presidente da Comissão Europeia Ursula Von der Leyen,
ao não lhe permitir que se sentasse numa poltrona, em pé de igualdade,
num gesto desrespeitoso que também não mereceu reparo por parte do
Presidente do Parlamento Europeu Charles Michel, o que é censurável.
A história dos Direitos das Mulheres é constituída por inúmeros episódios
de avanços e recuos que mostram bem como nada é adquirido neste
domínio.
Os crimes de violência contra as mulheres, designadamente a conjugal,
incluindo a violência sexual, têm sido dos que mais alterações sofreram
desde 1982. Desde a exigência da “malvadez e do egoísmo” como
elementos típicos do crime de maus tratos conjugais até às sucessivas
mudanças da natureza quanto à necessidade de queixa; desde os
sucessivos alargamentos do conceito legal de violação até à maior
exigência no que se refere ao consentimento, para já não falar da enorme
discussão que suscitou a norma entretanto revogada que permitia a
aplicação da tese do crime continuado a estas infracções, que por
tutelarem bens jurídicos pessoais não deviam merecer essa atenuação
especial. Muito tem mudado, mas não é suficiente.
Tenho muitíssimas reservas quanto aos procedimentos que vigoram nos
Tribunais e que humilham as vítimas. Claro que não é só em Portugal que
vemos essas práticas discriminatórias. Vi há pouco tempo na Netflix a
série “Unbelievable”, baseada numa história verídica, que teve lugar nos
Estados Unidos e que narra o tormento de uma jovem que apresentou
queixa por violação.
Não só foi descredibilizada, como sujeita a uma devassa da sua vida
privada e, mais grave ainda, quando, devastada pelo pesadelo das
múltiplas vezes que teve de prestar depoimento, quis desistir da queixa e
acabou acusada por queixa fraudulenta. Um calvário que demorou oito
anos até que foram descobertas fotografias suas na posse do violador.
Impressionante e perturbador.

Outra das coisas horríveis que mais assombra as vítimas é a linguagem
utilizada nas acusações públicas. E de facto não apenas é algo que as
incomoda, mas também contribui para as coisificar, despojando-as da sua
qualidade de seres humanos. Uma linguagem quase pornográfica, que as
trata como objectos, em que o violador é o protagonista de um filme,
equiparado a um actor de Hollywood.
O que sei também é que continuamos a ver decisões em que persiste o
preconceito do consentimento presumido no caso de violação em
contexto de namoro. Jovens universitárias que têm de aceitar introduções
anais dolorosas. Que humilhações iremos continuar a permitir pela
indiferença?
Num momento em que a cultura do discurso de ódio dirigido às mulheres
se intensifica na Internet, é altura de repensar a importância de mudar a
violação para crime público.
Há sinais que devemos dar claramente, no sentido da maior censura
pública a um crime que deixa tão graves sequelas traumáticas nas suas
vítimas.
Ora, como dizia Einstein “Loucura é esperar resultados diferentes se
fizermos tudo Igual”.
Esta nova petição cujos primeiros subscritores são os mesmos que se
deslocaram ao Parlamento com o objectivo de ver alargado o estatuto da
criança-vítima, conta já com mais de 60 mil assinaturas.
Vou mencionar esta equipa maravilhosa a que me honra pertencer:
Francisca de Magalhães Barros, Manuela Eanes, António Garcia Pereira,
Isabel Aguiar Branco e Rui Pereira.
Sentimos que esta é uma luta mais difícil, porque apesar de tudo,
relativamente à Criança, por vezes alcançamos consensos que às Mulheres
são negados.
Por isso, só vamos parar quando nos parecer que há um clamor na
sociedade Portuguesa e que os nossos Deputados não irão ficar
indiferentes.

Pela Dignidade das Mulheres, iremos conseguir.

Dulce Rocha

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