O ano das Pandemias

O ano de 2021 começou agora e Portugal assumiu a Presidência da União Europeia pela quarta vez, num momento dominado por duas preocupações especiais: a pandemia do Covid 19 com todas as suas consequências a nível social e as eleições presidenciais. 

A palavra Pandemia passou a dominar os discursos, e com estes números relativos aos contágios que dispararam logo no início do ano, nem as vacinas conseguiram destroná-la. Receio bem que mais uma vez a emergência climática seja adiada e que o combate às outras pandemias, às ancestrais, da violência contra as mulheres e crianças seja apenas mencionado, mas que as medidas fiquem, como sempre, bastante aquém do que é indispensável para produzir resultados. 

Durante os debates da pré-campanha eleitoral, foram muito pontuais as referências às desigualdades e às discriminações sexistas. Para os nossos candidatos, terei de concluir que esta é uma questão menor que não merece tanta atenção como a saúde, o desemprego ou a corrupção. Não os incomoda a violência doméstica, a ponto de pelo menos merecer uma menção como a eutanásia? Claro que a TAP também deve ocupar lugar nos debates, mas é inquestionável que, não obstante a Pandemia  do Covid 19, há pandemias ainda mais persistentes, que causam danos graves e que são também mortíferas.  

Comecei a escrever numa altura em que, apesar do aumento dos casos e do agravamento dos internamentos, tínhamos a esperança de que as vacinas conseguissem alterar significativamente este cenário. Sabemos agora que o efeito preventivo que esperamos ainda vai demorar, mas temos de acreditar que aquela situação de grande incerteza que durante tanto tempo nos obrigou a mudar hábitos e a lamentar vidas, irá melhorar consideravelmente, dentro de algum tempo.

Espero que esta importante conquista da ciência tenha consequências positivas, desde logo de maior reconhecimento a quem dedica o seu saber, a sua inteligência e o seu tempo ao bem da Humanidade, mas também de gratidão para com os cientistas e os profissionais de saúde que procuram minorar o sofrimento do seu semelhante, empenhando-se nos cuidados necessários para a cura e melhoria da doença e da dor que tantas vezes a acompanha. Esse será um efeito vantajoso, que em princípio se verificará.

No entanto, tivemos durante o ano 2020 mais uma vez um conjunto de tragédias que confirmam a enorme regressão a que estamos a assistir nos Direitos das Mulheres e das Crianças, em todo o mundo.

Nahla Haidar, membro do Comité para a Eliminação de todas as Discriminações contra as Mulheres (CEDAW) e da Comissão internacional de Juristas não tem dúvidas, e há um mês, em 9 de Dezembro passado, por ocasião do Dia dos Direitos Humanos, afirmou que esse retrocesso é visível e que só tendo dele consciência poderemos avançar. 

Entre nós, quando se fala na Igualdade, ouvimos ainda muitas vezes que antes do 25 de Abril, as mulheres não podiam ser magistradas, nem diplomatas, que os maridos podiam abrir-lhes a correspondência e que não podiam viajar sem autorização, mas é uma narrativa que começa a fatigar-me, confesso. Até parece que temos de agradecer todos os dias os direitos à privacidade e ao ingresso na magistratura e na diplomacia e que eles significam o pleno dos direitos que nos são devidos, pelo que será aconselhável que nos mantenhamos caladinhas, sob pena de sermos consideradas perigosas radicais. 

A atitude mais apreciada é a da discrição, sendo criticadas as mulheres que ousam discordar. Houve uma vez um político que depois foi ministro, que sobre mim disse que “já estava a falar demais”, quando eu, como Presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens, tive de falar sobre abusos institucionais, que se verificavam no nosso País e por esse mundo fora.

O que quero dizer é que claro que foram positivas essas alterações sob o ponto de vista da consagração da igualdade de direitos, mas passados mais de quarenta anos, as mulheres continuam a ser vítimas das mais bárbaras crueldades, as suas queixas, desvalorizadas, potenciam mais violências, muitas vezes banalizando-se tratamentos desumanos, como se isso fosse natural.  

Continuamos a ver decisões judiciais em que as mulheres são humilhadas, responsabilizadas pelas agressões que sofreram, o que sucede mais notoriamente nos crimes de natureza sexual, desrespeitando-as na sua dignidade e com frequência acabamos por saber que aquelas lesões fatais, que indiciaram violências extremas que conduziram à morte foram precedidas de outras, que tinham levado já à apresentação de múltiplas queixas por parte das vítimas.

A conclusão só pode ser uma: o Estado tem-se mostrado, em muitíssimas ocasiões, incapaz de proteger quem mais precisava de apoio.

Temos conseguido proteger, de alguma forma, as pessoas doentes, as que são mais idosas, as que ficam sem emprego, mas as que vivem aterrorizadas com medo de um agressor que lhes pode tirar a vida, essas permanecem por largos anos sozinhas, em pânico, apesar do botão, apesar dos números de emergência, apesar até das pulseiras electrónicas.

Há cerca de 10 anos, a ONU lançou um apelo aos Estados no sentido do reforço dos direitos das mulheres e das crianças vítimas de violência. 

Os Países da União Europeia aceitaram essa responsabilidade, com base em sucessivos inquéritos de vitimação que apresentavam números inesperados de 25% de mulheres que disseram ter sido vítimas de violência em algum momento da sua vida, e em Maio de 2011, houve a chamada Decisão Europeia de Protecção, que visava o combate ao tráfico de seres humanos, ao abuso e à exploração sexual de crianças e que resultou numa proposta de Regulamento sobretudo para facilitar as ordens de restrição e as ordens de protecção, o qual viria a ser aprovado na Reunião dos Conselho Europeu de Ministros da Justiça, em 6 de Junho de 2013.   

Decorridos estes anos, o que me parece é que, apesar da determinação e empenho de alguns membros do Governo, nomeadamente as Secretárias de Estado que sucessivamente têm tido o pelouro da Igualdade, continuamos a não ter um plano de acção estratégico e integrado para combater a violência contra as mulheres e as crianças com a importância adequada e capaz de potenciar a efectiva protecção das mulheres e das crianças.

Não é só em Portugal que isso sucede. 

Lembro-me bem da promessa de Emmanuel Macron, que elegeu a luta contra a discriminação entre mulheres e homens como a grande prioridade do seu governo e, ao que sei, não tem obtido grandes resultados.

Em Espanha, temos dos Governos mais equilibrados da História, no que diz respeito à paridade entre os sexos, com um número de mulheres bastante superior ao que é usual, e não tem diminuído significativamente a percentagem de feminicídios. 

Nahla Haidar no texto que referi há pouco, fala de um retrocesso geral.

Sei que há visões mais optimistas. E tenho consciência que em Portugal, não será difícil encontrar quem discorde e alguns até já dizem, jocosamente embora, que são necessárias quotas para os homens. 

É sempre mais reconfortante valorizar o que é positivo, porque não é fácil admitir que não foram atingidos os objectivos. E a tendência do ser humano é para humanizar e para romantizar. Edgar Morin disse uma vez que “ por vezes, as convicções são mais fortes do que os factos que as desmentem” e na minha vida tenho-me confrontado com essa constatação demasiadas vezes.  

Por exemplo, ocorre nos abusos sexuais de criança um fenómeno semelhante em que, mesmo sabendo que a maioria dos abusos são praticados por familiares, os profissionais têm muitas vezes dúvidas quando a denúncia sobre o agressor recai no pai ou no avô.  A tendência é para não acreditar nas declarações da criança, tal como sucede na violência doméstica, em relação às mulheres, que, aliás, não raramente desvalorizam, também elas próprias, o perigo que correm. 

O que tem falhado, então? 

Creio que poderá ser a perspectiva. Em vez da prevenção, temos dado mais atenção à remediação, à protecção e à punição.

Não quero de forma alguma significar que estas não sejam áreas importantes. Eu própria tenho defendido com a persistência de que sou capaz que temos de repensar o sistema punitivo, que continua a privilegiar os crimes patrimoniais e a desvalorizar os bens jurídicos pessoais, quando isso não corresponde aos sentimentos gerais da população que não aceitam condenações simbólicas com penas cuja execução fica suspensa em casos de crimes sexuais ou de violência doméstica, enquanto os autores de crimes patrimoniais enchem as prisões.

Temos, pois de continuar a apostar em medidas que preconizem penas mais duras para quem agrida a dignidade e a integridade pessoal, que é aliás o que decorre da valoração constitucional.

Mas uma coisa é certa: estamos a verificar que são insuficientes as medidas tomadas até agora para combater a violência. Tem de haver medidas conjugadas, porque são complementares.

E creio mesmo que as medidas de natureza preventiva são as mais eficazes, porque susceptíveis de potenciar a mudança qualitativa que desejamos.

Aliás, todas as convenções, decisões, directivas de entidades da ONU e da União Europeia que têm por base recomendações de Peritos, dedicam especial cuidado à prevenção, embora se observe que os Países, quando decidem levar à prática as medidas, não a consideram prioritária.

O que se constata é que são efectuadas pequenas alterações na legislação, e mesmo assim, com algum enfado, tudo parecendo uma contrariedade, porque alguns dos nossos legisladores entendem que tinham redigido umas leis perfeitas e que é uma maçada e uma redundância terem de alterar artigos que, em seu entender, não careciam de ser aperfeiçoados, repetindo até à exaustão que as leis são óptimas, e que o mal é todo da deficiente aplicação. 

Obviamente que, muitas vezes, mesmo com leis obscuras o aplicador eloquente, humanista e com sentido de justiça consegue decidir bem, mas temos de procurar ter leis claras e adequadas, com uma redacção o mais inequívoca possível, que facilitem as decisões justas.

Às vezes, nestas matérias, as resistências são tais, que fico com a sensação de que são revisões meramente formais e que apenas se concretizam por compromissos assumidos a nível internacional, que não correspondem a nenhuma exigência intelectual, sentida pelos nossos Deputados. Daí que tais alterações não tenham sequência: nenhuma regulamentação, quando ela se justifica, nem medidas de carácter preventivo. 

Ora, são justamente estas as que têm qualidades que irão permitir evitar a violência. Não há hipótese de erradicar esta pandemia sem uma cultura de prevenção.  Só medidas deste tipo, têm essa natureza transformadora. Tal como na pandemia do Covid 19, só a vacina poderá evitar a doença grave, também aqui, na pandemia da violência de género, só as medidas preventivas terão essa capacidade.

E se repararmos, todas as medidas que preconizam mais preparação dos profissionais, mais avaliação, mais divulgação, mais informação, inclusive às vítimas de crime, são postergadas para momentos “mais adequados”.

O que observamos, porém, é que nunca é entendida oportuna essa maior preparação e a avaliação de risco sistemática e rigorosa ainda não é generalizada.

A Comissão para análise retrospectiva dos homicídios em contexto de violência doméstica já fez um conjunto de relatórios, tem chamado a atenção para a desvalorização das queixas, mas não vemos que se possam alterar de forma significativa os procedimentos, se não houver cada vez mais conhecimento, mais formação e sobretudo mais vontade de efectivamente erradicar a violência.  

Não podemos chegar a resultados diferentes se as diligências permanecerem, no essencial, inalteráveis.  

E estou convencida que se dedicarmos uma maior atenção à prevenção, utilizando todos os meios possíveis, os resultados serão transformadores. 

Sei que, como de costume, aqueles que acham que tudo deve ficar como está, porque no fundo entendem que há superioridade masculina, que o lugar das mulheres é em casa, longe das universidades, da ciência e das artes, e por consequência das profissões que realizam as pessoas, esses vão dizer que tudo o que preconizo não passa de uma ideotice utópica.

Gostam imenso de falar sobre temas mais consensuais e quando são propostas medidas novas, vociferam e ridicularizam quem ousa expor as suas reflexões, como se a discussão de ideias tivesse passado a ser disparatada. Abominam o pensamento crítico e se pudessem, voltavam ao velho “Estado Novo” do pensamento único, do partido único, do livro único.

Quando digo que regredimos nos direitos, faço-o com a convicção que decorre da observação, que resulta quer da constatação dos números elevadíssimos de violência participada às autoridades policiais, quer dos inúmeros casos que me são relatados diariamente na primeira pessoa e que não me podem deixar indiferente. 

No nosso País, o exemplo mais acabado de retrocesso tem a ver com a forma como são tratadas as mães nas acções de regulação das responsabilidades parentais. As queixas que fazem são menorizadas, são muitas vezes surpreendidas com tratamento desrespeitoso, desvalorizando as suas falas, que inesperadamente são interrompidas. Tudo aponta para uma desconsideração, através de meios subtis, designadamente a criação artificial de diques que separam a apreciação sobre as violências e a avaliação sobre as competências parentais, como se fossem realidades de mundos diferentes que não comunicam entre si.   

Nos últimos anos espalharam-se teses que ganharam foros especiais e que fizeram renascer as velhas práticas de tirar as crianças às mães, se os pais forem mais poderosos financeiramente. 

No início da minha carreira de Magistrada, há cerca de quarenta anos, na Comarca de Setúbal, ainda tive processos desses, em que as mães vinham pedir a alteração do regime decretado antes do 25 de Abril, porque, por força das leis civis que diziam que os pais eram os chefes de família, tinham ficado sem os filhos. 

Até à revisão do Código Civil, que teve lugar em 1978, após a separação, as crianças só ficavam com as mães se os pais permitissem, e durante algum tempo, mesmo após as alterações que se verificaram na sequência da nova Constituição da República, as melhores condições económicas e sociais, designadamente as habitacionais continuaram a ser determinantes para a atribuição da guarda.  

Algumas dessas crianças contaram-me horrores que jamais esquecerei e outras relatavam histórias de indiferença. A maioria vivia com as avós paternas, algumas estavam em amas, mas todas ansiavam ir viver com as mães, que haviam sido expulsas de casa ou que de lá tinham sido obrigadas a sair devido aos maus tratos conjugais.   

Assistimos agora ao renascimento dessas práticas, depois de duas décadas em que os Tribunais privilegiaram a confiança dos filhos às mães, seguindo o que as recomendações internacionais preconizavam, designadamente a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, que no seu artº 6º estatui que a não ser em circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não será separada da mãe. 

Tais preceitos foram baseados na teoria da vinculação de Bowlby, Melanie Klein, Anna Freud ou Brazelton e que entre nós tiveram como expoentes máximos João dos Santos, Coimbra de Matos, Teresa Ferreira, Emílio Salgueiro ou Gomes-Pedro.  Foi a teoria da vinculação que enformou a da “pessoa primária de referência”, e que conduziu, por exemplo, ao princípio  do primado da preservação das relações afectivas profundas, que a nossa lei consagra.   

Mas nos anos 80 surge Richard Gardner com as suas teses perversas que visaram sobretudo defender maridos e pais violentos, afirmando que as queixas das mulheres e das crianças sobre violências eram falsas, que as mães o que queriam era afastar os filhos dos pais e que para isso até manipulavam as crianças, pelo que o adequado era mudar a guarda ou, no caso de as crianças se recusarem, interná-las em instituições até aceitarem.

A primeira decisão judicial em que me apercebi que tinha sido seguida esta tese ao milímetro, foi a da menina de Fronteira, obrigada a deixar a sua confortável e acolhedora casa, privando-a do amor e dos mimos da sua querida mãe e do convívio com os avós e tio. Durante cerca de um ano, a criança esteve num asilo por ter recusado visitas ao pai que acusou de comportamento abusivo. 

Por ter ousado criticar esta decisão, a escritora Inês Pedrosa viria a ser processada e, em minha opinião, injustamente condenada. Por muitos anos que viva, ficarei sempre com a sensação de que poderia ter feito melhor, pois fui sua testemunha e de nada lhe valeu o meu depoimento. 

Depois disso, muitas foram as decisões que me revoltaram. Uma desilusão. Pobres crianças! Pobres mães! 

O que gostariam os autores de decisões deste tipo era mesmo que imperasse o silêncio. Como antigamente. As mulheres eram espancadas pelos maridos e nada diziam. As crianças eram violadas pelos pais e nada diziam. Cheias de medo, calavam a indignidade. Esse continua a ser o modelo ideal para essa gente que saudosamente lembra os tempos em que às mulheres eram negados os mais elementares direitos de cidadania.  

Quiseram impor na Assembleia da República uma alteração legislativa que declarasse a residência alternada como presunção, regime-regra ou preferencial. 

Não passou. Mas em alguns Tribunais tenho reparado que decisões têm sido proferidas como se tivesse sido aprovado o regime preconizado pela petição apresentada pela Associação dita da “Igualdade Parental”.  

Na verdade, sempre soubemos que o poder tem a razão da força. 

Basta vermos o que sucede com a violência doméstica. Há quarenta e quatro anos que foi consagrada a igualdade como princípio constitucional, há quase trinta que o Código Penal prevê e pune os maus tratos conjugais, e sucessivamente tem alargado o âmbito do conceito, que desde 2007 se denomina “violência doméstica”. Mas os números continuam a inquietar-nos e a violência extrema a que assistimos é algo de muito perturbador. As crianças e as mulheres não estão a salvo da violência. Sejam pessoas humildes, sejam universitárias, sejam muito novas, sejam já bastante idosas, ninguém está a salvo.  

Felizmente cada vez vemos mais pessoas preocupadas com esta pandemia que não tem vacina. Desde há muito que académicos como Teresa Beleza, Elza Pais, Manuel Lisboa, Clara Sottomayor, José Ornelas, Garcia Pereira ou Rui Pereira fazem parte dos que combatem a violência. 

A nível das ONG, o Instituto de Apoio à Criança, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a APAV, a Associação de Mulheres contra a Violência, a UMAR, a Associação Projecto Criar, e mais recentemente a “Dignidade”, a “100 violência” ou a “quebrar o Silêncio” têm exigido que estas sejam matérias que mereçam mais atenção por parte dos poderes públicos. Também recentemente, Isabel Ventura, Isabel Aguiar Branco, Leonor Valente Monteiro, Maria João Marques ou Francisca de Magalhães Barros têm sido vozes insistentes. Tem sido um caminho virtuoso, pois nomeadamente Francisca Barros trouxe consigo pessoas mais jovens  e um conjunto de artistas e “influencers conhecidos”, como Jessica Athaíde ou Nuno Markl, por exemplo, o que ajuda a disseminar as ideias justas. Na Campanha que lançou no Instagram nos últimos dias do ano de 2020, foram lembradas as meninas Valentina e Lara, além das mais de trinta mulheres vítimas de feminicídio durante o ano que findou. Muito importantes estas iniciativas. 

Por ocasião do Dia Internacional contra a violência sobre as mulheres, o Observatório de Mulheres Assassinadas divulgou um conjunto de números e elementos que merecem séria reflexão acerca deste fenómeno tão destruidor. Nos quinze anos em que foram recolhidos dados pela UMAR, houve mais de 5000 crianças que ficaram órfãs,  570 mulheres  a quem foi tirada a vida e foram contabilizadas 663 tentativas de homicídio.  São números muito significativos. Não podemos ignorar.

Já este ano, no primeiro programa do “Governo Sombra”, Ricardo Araújo Pereira expressou o desejo de ser descoberto um tira-nódoas para acabar com a nódoa da violência doméstica.

Na falta de vacina ou de tira-nódoas, temos de apostar na prevenção, como já referi, e nos casos em que haja queixas e ameaças e perseguições, tem de ser feita uma rigorosa avaliação de risco, para que a segurança das mulheres e das crianças seja uma verdadeira prioridade.   Já temos o conhecimento. Temos de investir nesse instrumento.

Também não se compreende que ainda não se tenha autonomizado o crime de feminicídio. Quando considerarão oportuno autonomizar este homicídio tão condenável quanto insuportável? E quando se olhará com toda a atenção para as penas baixíssimas e quase sempre com execução suspensa? 

Tenho consciência que nenhuma medida sozinha resulta. Já o afirmei acima. Mas toda a vida ouvi isto, que demasiadas vezes é o pretexto para deixar tudo como está. E só se formos desprovidos de inteligência poderemos esperar resultados diferentes se, no essencial, tudo ficar inalterável. 

Se as mulheres são vítimas de violência e tiverem de sair para uma casa-abrigo, ficando o agressor refastelado, no conforto da casa que era de ambos, se chegada ao tribunal, depois de ter tomado uma decisão difícil, a mulher continua a ser olhada com desconfiança, os seus depoimentos não forem levados a sério, os seus temores desvalorizados, como se fossem infundados, sem sentido, resultado de efabulações ou de causas inexistentes, então de nada valerá dizer que se quer combater a violência, porque todos os sinais são opostos ao que se diz. 

O que vemos é que desde cedo os seres humanos de sexo feminino são tratados como seres de segunda categoria. Vítimas de humilhações, de tortura, de todo o tipo de violências, espancamentos, de violações, são histórias de vida reais que são dolorosas e que continuam a ser silenciadas. E são vítimas de homicídio, desde a Lara à Beatriz, desde a Valentina à Sandra. São tantos os nomes, que de nada vale dizermos que nos choca, se depois nada for feito para que tais barbaridades não sejam repetidas. Desde as muito novinhas, às mães e às avós, vemo-las a ser desconsideradas, agredidas, vítimas das maiores crueldades. Durante décadas, os discursos bem intencionados têm-se sucedido; porém, sucedem-se também os homicídios em contexto de intimidade ou após separações não aceites, e sabemos que quase todos são o culminar de violências sistemáticas sofridas anos a fio.  

Sabemos também que se houver muitas mulheres que não são respeitadas, também as crianças serão privadas de direitos e haverá também cada vez menos crianças. 

Tem de haver vontade política para que haja uma estratégia com medidas conjugadas, transversais. É isso que se chama de política integrada. Creio que está na hora. Temos de aproveitar esta Pandemia sanitária para combater também as outras que duram há séculos e que entendemos injustas. 

E aproveitar a Presidência Portuguesa da União Europeia para definir uma Estratégia que conjugue todas as medidas possíveis para transformar esta realidade tão dura para as mulheres será uma mais-valia.   

Temos de assumir compromissos. As novas gerações exigem de nós mais acção. Temos obrigação de os ajudar a ter esperança. Nas alterações climáticas como na prevenção e no combate à violência temos a responsabilidade de deixar-lhes um mundo melhor. Recentemente, ouvi um jovem a dizer que seria muito injusto que obrigassem a sua geração a ter de lidar com a extinção.  

No ano passado, houve, apesar de tudo, gritos de amor e fraternidade. Precisamos de pensamentos de grande profundidade e que representem uma reflexão pelos grandes valores da Humanidade. Precisamos de inspiração, mas sobretudo de persistência para continuarmos nesta missão pela promoção da Justiça, da Igualdade e da Dignidade Humana.

E claro, não haverá estratégia de mudança se às Organizações Não Governamentais não for dado um papel importante na definição das prioridades e das metodologias para prevenir o fenómeno e para punir os agressores.

Creio que se a nossa Presidência fosse assinalada também pelo combate à violência sobre as mulheres e as crianças, seria um bom contributo para que os Direitos Humanos fossem definitivamente um dos nossos fins prioritários. E tenho a certeza que os Portugueses e as Portuguesas ficariam orgulhosos se este fosse assumido como um grande desígnio nacional.

Deixe um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.