Em Defesa de Clara Sottomayor

Já é a terceira vez que inicio este artigo. Sei que da segunda vez que tentei escrever só pensava nas motivações diversas das pessoas que as levaram a estudar Direito. Ouvi muitos que não gostavam de matemática, outros que tiveram de trabalhar e o Direito oferecia aulas pós-laborais, poucos que quisessem lutar pela Justiça. Mas todas essas considerações poderei desenvolvê-las mais tarde. Agora tenho pressa de dizer o que considero essencial.

É curioso. Quem leia apenas os dois últimos títulos dos textos deste blog, até poderá pensar que em vez de magistrada do Ministério Público, tenha feito a minha carreira profissional na Advocacia, porque se associa o MºPº à Acusação e a Advocacia à Defesa. Mas essa é uma forma simplista de ver as coisas porque o MºPº deve estar sempre do lado da Verdade e dos Direitos Fundamentais. Daí que lhe caiba acusar os agressores e assim defender, por exemplo, as vítimas de violência doméstica,  ou ainda acusar os violadores de crianças e tudo fazer para garantir protecção e segurança às vítimas, designadamente, através de medidas de protecção adequadas, previstas na Lei.  

É neste contexto que defender a Senhora Doutora Clara Sottomayor constitui para mim um dever de cidadã, activista dos Direitos Humanos das Mulheres e das Crianças, ainda por cima, sabendo que tais comentários foram feitos na minha página de Facebook, por causa de um pensamento que partilhei quando tomei conhecimento que o principal suspeito do Homicídio da menina Valentina, de nove anos de idade, era afinal o seu próprio pai. 

Mas é também a continuação de deveres estatutários que tive muito gosto em exercer durante quase quarenta anos, na medida em que a considero vítima de acusações infundadas e injustas,  incompatíveis, aliás, com as nossas liberdades estruturantes e constitucionalmente garantidas.  

A Senhora Conselheira está a ser visada por ter expressado a sua indignação perante o homicídio de uma criança, em pleno período de isolamento por causa da pandemia.

E expressou-a de forma semelhante à que eu própria utilizei, e àquela que estava a ser veiculada em diversos órgãos de comunicação social. A informação que estava a passar era a de que a criança estava em casa do progenitor, de onde já havia fugido no ano passado, porque assim tinha sido determinado pelo Tribunal e que o processo de promoção e protecção instaurado na sequência da fuga nocturna do ano anterior, havia sido arquivado, aparentemente sem diligências essenciais. 

Ouvi ontem o Prof. Doutor Rui Pereira na televisão, que lembrou ter sido ele próprio induzido em erro, face às informações de que se dispunha, na altura.

A maior parte de nós estava em casa, em isolamento, decorrente do estado de emergência. Todos utilizámos mais a comunicação à distância, designadamente as redes sociais. 

Mas onde é que há aqui violação do dever de reserva? 

Este dever existe para defender a verdade. Para evitar especulações nocivas para o processo. Os Magistrados deverão abster-se de discutir na praça pública elementos processuais a que tiveram acesso no exercício das suas funções.  

Mas jamais este dever poderá colidir com o Direito constitucional dos Magistrados à Liberdade de expressão do seu pensamento.

Aliás, isso é que seria um atentado inadmissível, violador de um Direito Fundamental, estruturante da nossa Democracia, do nosso Estado de Direito.

Era o que faltava que os profissionais da justiça fossem impedidos de discutir a justiça. Que lhes fosse vedado falar sobre Direitos humanos, ou sobre os valores fundamentais enunciados no artº 9º da Constituição da República, ou que só o pudessem fazer muito baixinho, como no tempo da Pide e da Censura.

Sei que houve alguém que se queixou dos comentários, mas tive sempre a firme convicção que não haveria lugar a procedimento disciplinar algum.  

Já não estamos nos tempos em que Calamandrei temia que os Juízes vivessem em círculos demasiado fechados.  Hoje, há muitos magistrados que escrevem regularmente para os jornais, dão entrevistas nas televisões, e expõem livremente as suas ideias sobre assuntos da maior relevância. 

E ninguém tem o direito de limitar a sua liberdade de expressão, a não ser naquelas estritas situações supra mencionadas, que podem prejudicar uma investigação, por exemplo. 

Mas mesmo assim, creio que haverá sempre de ser respeitada a interpretação mais robusta relativamente à liberdade de expressão, pois que esta prevalece em caso de interesses divergentes.  

Em nome do interesse público de determinada matéria, poderá sacrificar-se o interesse privado, como repetidamente tem decidido o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. 

Pelo contrário, o que hoje se discute é a possibilidade de serem consagrados expressamente na lei limites aos chamados “discursos de ódio”, dirigidos a grupos historicamente discriminados como as mulheres, as comunidades de negros ou ciganas e as pessoas LGBTI.  

É certo que Portugal tem sido recorrentemente condenado pelo TEDH, justamente por violação da Liberdade de expressão.  

Mas tenho a profunda convicção que o Conselho Superior da Magistratura irá decidir-se pelo arquivamento, porque este é um caso cuja evidência é patente. 

Na verdade, este procedimento de inquérito não tem qualquer fundamento. Inquérito para ouvir quem? E o queixoso tem alguma legitimidade para a queixa? Representa quem? Só se representar as forças obscuras de Hades que gostava de prender a luz.

E creio também que as razões para este procedimento só podem residir no facto de a Conselheira Clara Sottomayor ser mulher e sobretudo, ser feminista.

Fez no mês passado 27 anos que Ruth Ginsburg ascendeu ao Supremo Tribunal Federal americano. 

Pois bem, nesse mesmo ano, em 1993 em Portugal,  a primeira Juíza portuguesa, outra Rute, Garcez de seu apelido, ascenderia a um Tribunal Superior, não ao Supremo, mas ao Tribunal da Relação de Lisboa.

Este atraso relativo deveu-se a uma exclusão histórica, visto que até ao 25 de Abril de 1974, a magistratura esteve vedada às mulheres no nosso País. Só recentemente algumas mulheres chegaram ao Supremo Tribunal de Justiça. 

No tempo da Ditadura era costume lembrarem-nos que as mulheres eram demasiado emotivas para serem magistradas. 

Ainda António Damásio não tinha feito as suas pesquisas sobre inteligência emocional, em que conclui que a melhor inteligência, a mais produtiva, está muito associada à emoção.  Nas suas últimas obras, sobre sentimentos, Damásio vai mais longe e defende  que sem empatia não há progresso, nem justiça. 

Clara Sottomayor tem essas qualidades que a tornam um símbolo de juíza inteligente, culta, sensível e justa. E é por isso que está próxima dos cidadãos, que a respeitam e vêem nela um exemplo e uma inspiração.

Se pensarmos só na história, talvez não seja de estranhar que ainda haja tantas resistências à participação feminina no Supremo Tribunal, mas é injusto, pois até parece que vêem a nomeação de algumas mulheres como uma ofensa, sobretudo das que “não são da carreira”, expressão usada para se referirem aos que acederam ao STJ através da quota para os Juristas de mérito. 

Contudo, tenho a certeza que não podemos voltar atrás. Não acredito que voltemos 50 anos atrás, ao tempo dos lobos que uivavam enquanto os Juízes se acomodavam nos Tribunais Plenários, esquecendo-se da Liberdade e da Justiça. Nesse tempo, as mulheres foram semi-excluídas desses lugares, onde não lhes era permitido julgar, mas podiam ser julgadas, como Natália Correia, como Aurora Rodrigues, como Margarida Tengarrinha, como se preparavam para fazer com Maria Velho da Costa, Isabel Barreno e Maria Teresa Horta se não tivesse havido Abril. 

A nossa Constituição da República logo no artº 1º estatui que a República Portuguesa se baseia na Dignidade Humana e no seu artº 9º al. h) atribui ao Estado a Tarefa fundamental de promover a igualdade entre homens e mulheres, proclamando nos artºs 24º e 25º a inviolabilidade da vida e da integridade da pessoa humana. Pelo exposto, Clara Sottomayor, ao fazer da luta contra a violência e pelos Direitos Humanos a sua causa, e a sua missão de vida, está do lado certo.

Quando li o seu livro “Temas de Direitos das Crianças”, que tive a honra de prefaciar, compreendi que a sua tomada de posição relativamente à residência alternada, iria ser motivo de forte oposição de Associações que a promovem sem ter em consideração a extensão e os perigos da violência doméstica. Jamais poderia imaginar, porém, a extrema agressividade verbal que tem merecido por parte dessas Associações.   

A Conselheira Clara Sottomayor integra pelo seu talento, saber, e activismo na causa dos Direitos das Crianças, o Conselho Consultivo do Instituto de Apoio à Criança e sinto-me particularmente grata por ter aceitado o nosso convite para fazer parte deste órgão social, cuja composição muito nos orgulha.  

Considero, por tudo quanto expus, que é altura de nos associarmos num amplo movimento que deplore esta perseguição à Conselheira Clara Sottomayor, erguendo bem alto os valores da cidadania, da igualdade e da condenação da violência.

Como dizia há pouco, há quem continue agarrado a ideias passadistas, conservadoras, que fazem lembrar tempos que não queremos mais.

O nosso compromisso é com um futuro mais justo e não compreendemos que quem conserva as velhas perspectivas e discorda dos novos ideais e dos princípios constitucionais seja chamado a decidir sobre direitos fundamentais.

Pela Liberdade de Expressão do Pensamento! E pela Dignidade da Pessoa Humana!

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