Os abusos sexuais de criança e a nova/velha tese do trato sucessivo

Nos últimos dias têm sido tantas as notícias acerca de crimes sexuais, que não quero deixar de contribuir para que estes sejam temas onde o pensamento crítico permita uma discussão séria, porque por vezes as afirmações são tão incisivas que até parece que todos temos de pensar igual. Já vivi nesse tempo e definitivamente não gostei do pensamento único, de tal forma que me envolvi com apenas 18 anos na luta pela Liberdade e pela Justiça.

Isto foi só um pequeno preâmbulo, porquanto esta matéria dos abusos sexuais de crianças era tratada no início do milénio de uma forma tão superficial, que considerava um verdadeiro escândalo, pois havia uma ausência de conhecimento bastante chocante, devido em muito ao silêncio que a rodeava e aos até então tímidos estudos que se faziam. Os inquéritos de vitimação davam nessa altura os primeiros passos e Lloyd De Mause escrevera a sua História de Infância há poucos anos…

Lembro-me de falar sobre os múltiplos abusos sexuais nos meus processos  e de como isso tinha gerado em mim uma estupefação só ultrapassada pela revolta de ver tanta dor nas crianças. Esse conhecimento que adquiri no então Tribunal de Menores de Lisboa, derivava também da enorme concentração de processos de perigo, pois o Tribunal tinha jurisdição sobre uma extensa área, antes da criação das CPCJ e dos Tribunais de Família nas comarcas da chamada área metropolitana de Lisboa (Oeiras, Sintra, Cascais, Loures, Almada, Seixal, Vila França de Xira, além da cidade de Lisboa, claro). Alguns colegas olhavam-me como se eu fosse uma “ET”, pois nunca imaginariam que o mal pudesse ter uma dimensão daquelas. Só passado algum tempo, com a revelação de casos chocantes e revoltantes em que a lei não conseguiu acompanhar a censura da comunidade, quando por exemplo, chamava atentado ao pudor a violações de crianças de dois anos, se decidiu que os casos não deviam ficar confinados às casas, aos hospitais psiquiátricos, aos tribunais e até às prisões, mas que deveria ser a sociedade a tomar consciência da inadequação das penas à dimensão do fenómeno, ao sofrimento das vítimas e às consequências para as suas vidas de crimes tão prejudiciais ao desenvolvimento das crianças.

Entretanto foi publicado o “Amor incerto” de Elisabeth Badinter, Lloyd De Mause disse a sua célebre frase “A história da Criança é um pesadelo do qual só agora começámos a despertar” e nos finais dos anos 90 do século passado, alguns estudiosos começaram a falar de pandemia e vimos que se generalizavam os inquéritos de vitimação.

Entre nós, só em 2001, os abusos sexuais praticados dentro da família por ascendente, por exemplo, passaram a ser crimes de natureza pública. Antes, como dependiam de queixa, as crianças violadas pelos pais, ficavam inteiramente sozinhas, uma vez que o direito de apresentar  queixa cabia exatamente ao agressor. Isto era tão incompreensível e perverso que sempre que podia, nos encontros, seminários, entrevistas ou artigos, sentia que tinha de falar nessa legislação inaceitável, que em nome dos valores familiares, escondia estes crimes hediondos, sujeitando as crianças a estes horrores e preconizava uma alteração que impusesse o crime público, visto que em meu entender, o Estado não podia ficar indiferente ao indizível sofrimento destas crianças.

Tive a sorte de ser ouvida em Junho do ano 2000, por ocasião do Dia da Criança, em declarações que fiz à TSF pela Drª Maria de Belém, então Ministra para a Igualdade, que logo me telefonou e me disse que estava chocada com a situação, que até então desconhecia, e me convidou a integrar um grupo de trabalho para ser proposta uma alteração legislativa no sentido de tornar estes crimes públicos.

Passado pouco tempo, houve uma remodelação governamental, deixou de haver Ministério da Igualdade, mas Maria de Belém honrou o seu compromisso e já no Parlamento conseguiu propor a alteração legislativa que em Agosto de 2001 viria a consagrar a natureza pública dos crimes sexuais praticados por familiares que coabitassem ou que exercessem algum tipo de controlo sobre as suas vítimas.

Dezoito anos depois, parece que foi sempre assim, mas não. Tivémos de lutar muito para mudar a lei. É de justiça que recorde aqui a pedopsiquiatra Teresa Ferreira, que me acompanhou e me incentivou neste combate e também a deputada Maria do Rosário Carneiro que em 1997 me procurou para juntas fazermos uma proposta no sentido de conferir natureza pública aos crimes sexuais dentro da família.

Nessa altura, enquanto presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Criança,  era convidada para participar em encontros e seminários e não perdia uma oportunidade para preconizar essa alteração legislativa que considerava muito justa e necessária, mas o Estado demorou tempo a assumir as suas responsabilidades na proteção destas crianças.

Até parecia que ao considerar estes abusos um assunto privado a nível penal, o legislador acabava por permitir crueldades e sevícias contra crianças indefesas, sem que os juristas com nomes sonantes que compunham e presidiam às comissões de revisão conseguissem explicar a razão desta impunidade consentida pela natureza semi-pública dos crimes.

Passado pouco mais de um ano, em 1998 redigiu-se uma fórmula que dava poderes ao MP para proceder criminalmente contra o agente se entendesse que era do interesse da vítima prosseguir, mas tal veio a revelar-se insuficiente e gerador de injustiças, uma vez que permitia o tratamento muito díspare de situações idênticas.

De salientar também que estas têm sido infrações em cuja previsão legal se têm verificado redações diversas. Nessas sucessivas alterações, no geral podemos dizer que houve evoluções positivas, mas foram-se simultaneamente inventando meios de desvalorizar o sofrimento das vítimas, desconsiderando-as, desacreditando os seus depoimentos, e até criando mecanismos para condenar em penas que as ONG de defesa das crianças e das vítimas, os especialistas em sociologia da infância, os médicos, os psiquiatras e psicólogos da infância e os magistrados e juristas dedicados à defesa dos direitos humanos entendem na sua maioria, como bastante baixas, ou que, por ficarem suspensas na sua execução, não cumprem as respetivas finalidades de punição.

Na verdade, sabemos que os danos psíquicos causados por abusos sexuais na infância são devastadores e há lesões físicas irreversíveis de violações que ocorrem em baixa idade. Intervim em processos que não mais esquecerei em que as crianças sofreram horrores, quer no Tribunal de Comarca, quer nos Criminais, quer mais tarde no Tribunal de Menores de Lisboa, e nem sempre a recuperação psicológica era garantida. Tive casos de meninas que ficaram com lesões gravíssimas, rasgaduras e perfurações com consequências que já se sabia iriam conduzir a incapacidade de procriar e tive outros casos muito sérios de meninos que se recusavam a sair de casa com medo de encontrar o abusador. Tive diversas situações em que as crianças regrediram no seu desenvolvimento, que deixaram de verbalizar corretamente, que regressaram às enureses e à ausência total ou parcial de controlo dos esfíncteres, de crianças com perturbações alimentares ou então que manifestavam problemas, não apenas na escola, com deficiente aprendizagem, mas também na socialização.

Mais tarde, soubemos dos crimes praticados na Áustria ou na Bélgica em que foram sequestradas ou raptadas crianças, e dos abusos sistemáticos que ocorreram em instituições de acolhimento por esse mundo fora, dos Estados Unidos à Austrália, de Portugal à Itália. Crianças pobres, internadas em acolhimento residencial e que agora com cinquenta ou sessenta anos vêm contar as dores, o pânico, a vergonha e o pesadelo em que se transformaram as suas vidas. Na altura, não foram protegidas, foram invisíveis.

As suas queixas eram desacreditadas, desvalorizadas, e os agressores bem sabiam que era assim. Além de as amedrontarem, quase sempre lhes dizem que ninguém acreditará nelas, o que conduz ao silêncio destas vítimas que por serem crianças ainda são mais vulneráveis.

Reconhecemos, obviamente avanços que merecem ser mencionados: Foram alargados os conceitos legais, foi reduzido o número de crimes semipúblicos, o que teve efeitos muito positivos, visto que permitiu a instauração do procedimento criminal em muitas das infrações que ficavam impunes por extinção do direito de queixa, em que o prazo prescricional era de seis meses. Isso significava que os adolescentes, que só adquiriam o direito de queixa aos 16 anos, tinham de exercer esse direito até aos 16 anos e meio, sob pena de nem sequer haver lugar a qualquer investigação no âmbito de um inquérito penal.

De salientar por outro lado, que tem havido paralelamente, um esforço das instâncias europeias no sentido da prevenção e do combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e têm-se sucedido, estudos campanhas, recomendações, diretivas e até uma Convenção (de Lanzarote) que preconiza um conjunto de medidas cuja implementação está a ser avaliada pelo Conselho da Europa.

Não obstante, constatamos que a desvalorização deste tipo de crimes persiste.

Ainda neste fim-de-semana soubemos que só muito raramente são aplicadas penas acessórias aos condenados por crimes sexuais contra crianças, designadamente as interdições do exercício de profissões em que haja contacto com crianças ou as inibições do exercício das responsabilidades parentais.

Mas o que é mais extraordinário e surpreendente diz respeito ao renascimento da tese do crime continuado, agora denominado de trato sucessivo, uma vez que a figura do continuado deixou de ser permitida.

Os fundamentos são muito semelhantes e chocam imenso porque reduzem a pena de uma forma tão intensa que mudam inteiramente o que seria expectável. Mesmo quando está em causa um número considerável de crimes, as penas são levíssimas e ficam demasiadas vezes suspensas na sua execução, o que é sentido como injusto pelas vítimas, cujo sofrimento é menorizado.

Acresce que também nestes crimes, à semelhança do que sucede com os crimes de violência doméstica, por exemplo, com estas penas está-se a dar um sinal de impunidade aos agressores, que quase vêem legitimada a sua atividade criminosa que muitas vezes se prolongou no tempo e que causou prejuízos sérios ao desenvolvimento harmonioso e saudável das crianças vítimas, violando múltiplos bens jurídicos, desde o direito à integridade pessoal  e ao desenvolvimento integral, à dignidade e no caso dos adolescentes o próprio direito à autodeterminação sexual.

Não creio que desta forma se consigam obter os resultados desejados. Nos crimes contra as pessoas não deve haver lugar a figuras jurídicas pensadas para as infrações patrimoniais. As penas prosseguem fins de retribuição e de prevenção que ficam postos em causa com reduções extraordinárias e com o recurso sistemático à suspensão, mas sobretudo reduzem a dignidade da vítima que depois de ser violada, como que deixa de ser pessoa, pois essas teses conduzem a que seja deixada sem qualquer proteção sob o ponto de vista penal, desconsiderando-a como sujeito de direito e de direitos. Ou seja, depois de ser agredida sexualmente, a vítima criança, através dessas teses do crime continuado/trato sucessivo deixa de ser plena titular de direitos, visto que deixa de interessar quantas vezes sofreu agressões sexuais. Se refletirmos com seriedade, é isto que sucede. Mas não pode ser, porque é inconstitucional. A pessoa mantém sempre a mesma dignidade. E a criança merece sempre ser protegida e tem direito à sua segurança e ao seu desenvolvimento integral.

Por tudo quanto expus, não podemos admitir estas novas teses do crime exaurido e do trato sucessivo que fazem renascer a tese de má memória do crime continuado e que mantêm a mesma desconsideração da vítima que conduziu à revogação da norma do artº 30º. nº 3 do C. Penal em 2010.

Finalmente, gostaria de retomar uma proposta que já venho preconizando no sentido do tratamento diferenciado deste tipo de crimes, dada a sua especificidade e a maior prevalência da reincidência que apela à avaliação da perigosidade, mesmo depois do cumprimento da pena.

No meu artigo sobre a exploração sexual de crianças no ciberespaço, publicado neste blog e que reproduz a comunicação que fiz aquando da apresentação do livro do meu amigo e procurador da República Manuel Magriço, fiz então algumas propostas que mantenho, designadamente no sentido de ponderarmos a possibilidade de complementarmos o cumprimento da pena com uma medida de segurança que permita o acompanhamento destes condenados através da avaliação periódica da sua perigosidade.

Não podemos tratar de forma igual o que é diferente e estes crimes assumem não raro contornos muito específicos, em que os agentes têm comportamentos de natureza compulsiva, pelo que sem poderem cair na inimputabilidade, também requerem ou aconselham medidas que prossigam a segurança das vítimas.

Vamos colocar os conhecimentos que já possuímos sobre estes crimes ao serviço das vítimas e vamos e discutir estas questões, com reflexão séria e com abertura, porque não conseguimos chegar a resultados diferentes se partirmos sempre dos mesmos pressupostos e se utilizarmos sempre os mesmos métodos.

Pela Dignidade das crianças!

Comentários sobre “Os abusos sexuais de criança e a nova/velha tese do trato sucessivo

  1. Dra Dulce Rocha, é de facto uma pessoa extremamente bondosa e sensível, tenho muita admiração e respeito por si, pelo seu empenho e digníssimo trabalho na defesa dos direitos das nossas crianças.
    Com muita emoção li o seu texto e partilho em absoluto com a sua opinião.
    Sofro com estas vítimas inocentes sempre que me surge algum processo, ou oiço mais um relato.
    Vamos continuar a lutar para que esta maldade insana, está monstruosidade pare, ou pelo menos, seja atenuada, talvez um dia……acabe…..
    Bem haja Dra Dulce Rocha!!

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  2. Exma. Sra. Procuradora Dra. Dulce Rocha,

    Sigo com interesse o seu trabalho que tenho em grande consideração. A propósito deste seu último post, feito no dia que se assinala a democracia em Portugal, e atenta a temática que ‘me é cara’ aproveito para deixar a partilha de opinião de mãe, enquanto interveniente de um caso semelhante no tribunal de família:

    Não basta pedir modificações legislativas, não basta agarrarmo-nos ao papel, não bastam palestras, nem formações ocasionais. Com o actual estado da arte da categoria profissional a quem os cidadãos recorrem, depois de ir ao médico, depois de ir ao psicólogo, depois de fazer exames no INML, depois de ir à PJ, já desesperados em última instância, nunca haverá grandes avanços.
    É dentro da própria classe que as principais mudanças, catalisadoras do verdadeiro progresso em matéria de infância e Juventude, têm que acontecer. É dentro da própria classe que há que fazer o reconhecimento da desadequação e total desarticulação de tratamento destes casos pelos tribunais. É dentro da própria classe que se devem adequar/renovar/reformar os cursos no CEJ. É a própria classe que tem que ser alertada para o risco de validar a aceitação de relatórios abusivos, sem provas, sem justificação, alguns em desrespeito pela forma de execução que obriga a lei, outros com conteúdos que não passam o escrutínio da evidência científica, mas que são tomados sob a égide da cientificidade só para poder despachar ‘mais um processo’, ou pior ainda para poder decidir contrariamente às provas oferecidas, tendo por base que o direito de família é de jurisdição voluntária e que o juiz goza do princípio de independência. Claro que se por cima disto tudo somarmos um relatório medíocre onde o juiz pode fundamentar a sua decisão e atirar as culpas caso a progenitora se queixe da decisão temos o quadro completo para se verificar a persistência na magistratura de um regime antidemocrático. É a própria classe que tem que pedir actuação disciplinar para os colegas que envergonham a classe e não como último recurso para apaziguar os ânimos do povo. O povo português já não é tão ‘ temente a Deus’ nem ao Juiz, sendo que este último não mais é omnipotente pois felizmente a informação neste mundo global chega mais rápido e melhor a todos. É com essa actualização, com a aposta no capital humano (procuradores, juízes, técnicos,) a meu ver SEMPRE Investindo na’ parte humana’ que teremos melhores julgadores, melhor e efectiva PREVENCAO e Protecção das crianças.
    O primeiro passo é reconhecer que o sistema está ‘doente’ e que precisa de ser ajudado…

    Em jeito de desabafo peço desculpa pelo comentário longo

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  3. Bom dia, fui abusada por 3 anos pelo meu pai. Conheço alguns casos de abuso sexual na cidade onde moro e uma adolescente continua tendo contato com o agressor, tio no caso, mesmo ele tendo sido denunciado e intimado. Ele foi considerado como um criminoso primário e está solto. Isso é sinônimo de burrice da justiça! Leio muito sobre este tipo de crime e gostei da sua tese. Obrigada!

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  4. Grande artigo! Parabéns Dra Dulce Rocha pela sua dedicação e foco nesta causa; e que tanto há ainda por fazer…

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