A Violência sobre as mulheres e as crianças e o Direito Penal

Lembro-me de um 8 de Março, em que a Prof. Teresa Beleza se referiu daquela forma que só ela sabe, ao facto de o Direito Penal ainda não censurar adequadamente as violações à integridade física, salientando que a Constituição da República havia declarado a sua inviolabilidade logo no artigo seguinte àquele que estatuía que a vida humana é inviolável. Apesar disso, os direitos patrimoniais pareciam ser mais protegidos pela lei criminal, na medida em que a burla ou o furto mereciam penas bastante mais pesadas.

Na altura, creio que estávamos em 1996, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas estava muitíssimo empenhada em contribuir para a Revisão Constitucional que haveria de dar lugar à Lei Constitucional nº 1/97. E, na verdade, em Abril de 1996, por ocasião dos vinte anos da Lei Fundamental, apresentámos um conjunto de propostas de alteração à Constituição, num documento histórico que propunha entre outras coisas, a consagração da promoção da igualdade entre homens e mulheres como tarefa fundamental do Estado, a conciliação entre a vida familiar e a atividade profissional como um direito económico-social, e talvez o feito mais emblemático de todos, que se consubstanciou na alteração ao artº 109º que ficou com uma redação de que ainda hoje nos orgulhamos imenso:

“ A participação directa e activa de homens e mulheres na vida pública constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”

Fizemos mais propostas, mas considero estas três as mais significativas. Passaram mais vinte anos e vejo agora com a sabedoria que o tempo e a reflexão costumam dar a quem gosta de pensar, que não deveria ter colocado tanta esperança nas palavras da Lei, ainda que se trate daquela a que se dá o nome de Fundamental.

Este ano, em vésperas do Dia Internacional das Mulheres, na sequência de um conjunto de mortes violentas praticadas em contextos de relações de intimidade, foi agendada uma reunião da Secretária de Estado Rosa Monteiro com ONG de apoio às vítimas de violência doméstica e foi decretado um dia de luto nacional pelo Governo, que dedicou um Conselho de Ministros a esta matéria e debateu medidas para prevenir e combater o fenómeno, tendo designadamente constituído uma comissão interministerial que em três meses deverá apresentar propostas.

Fiquei contente, porque pela primeira vez, o Instituto de Apoio à Criança foi convidado a participar, pelo que entendi que esse era o reconhecimento de que as crianças são efetivamente consideradas vítimas deste gravíssimo crime.

No passado dia 15 de Abril, foram apresentados alguns projetos de lei pelos Partidos políticos com representação no Parlamento e não obstante estar já menos confiante, continuo a ficar tristíssima, com expectativas defraudadas e a achar estranhas imensas coisas. Não estava, por exemplo à espera que nenhuma das propostas contemplasse o feminicídio como crime autónomo.

A palavra já entrou nos comentários, nas declarações, nas comunicações, mas a lei continua a não o reconhecer como tipo legal autónomo. Claro que já é homicídio qualificado, mas a sua autonomização seria mais um sinal da censura agravada que todos dizem desejar.

Sobre as críticas às propostas que preconizam a elevação do limite máximo da pena, posso dizer que fiquei até desiludida, porque se repetem até à exaustão afirmações acerca da inutilidade da consagração de penas mais severas, sem sequer haver preocupação no que respeita a ponderar a importância da natureza dos crimes a que correspondem as penas.

Há mais de quarenta anos que esse argumento relativo ao evitamento das penas elevadas tem servido para manter as molduras penais dos crimes contra as pessoas baixíssimas, quando comparadas com as molduras do tráfico de droga, das burlas e dos furtos qualificados, por exemplo, crimes que, segundo dados recolhidos pela Obra Vicentina de Apoio aos Reclusos (OVAR), representam 80% das condenações dos presos.

Ouvi há pouco tempo uma entrevista do Presidente da OVAR, a quem foi atribuído em Dezembro passado o Prémio Nacional dos Direitos Humanos da Assembleia da República, e que se indignava com estes números, pois esclarecia que estes 80% dos presos, mesmo os referenciados por furto ou burla, tinham sido condenados por causa do tráfico de droga, infração que curiosamente não existia há 50 anos.

Claro que desde 1982, houve uma enorme evolução, mas ainda assim podemos afirmar que são os miseráveis que povoam em maior número as nossas prisões.

Mais, como muitas vezes são desprovidos de apoio familiar e têm pouca escolaridade, não conseguem empregos estáveis e depois reincidem nos furtos e no pequeno tráfico, acabando por voltar à cadeia, onde passam a maior parte das suas vidas vazias de amor e de um mínimo de conforto.

Muitos dos jovens que ouvi nos Processos hoje chamados “tutelares educativos” eram órfãos de mãe, vítimas das mais horríveis violências ou de abandono familiar, quase sem escolaridade, viviam em lugares sem condições e foram engrossar uns anos mais tarde a população prisional. Como poderemos admitir que não têm estatuto de vítimas?  Bem, parece que neste aspeto, haverá consenso ou pelo menos consente-se a inclusão, o que é de louvar…

Lembrei-me também de salientar uma curiosidade que desconhecia. No que respeita à população prisional feminina, soube há pouco tempo, que as sul-americanas que foram presas com droga nos intestinos constituem uma enorme fatia. Mais miseráveis.

Quanto aos agressores da violência doméstica e aos autores de crimes sexuais contra crianças, sabemos que grande parte anda por aí, amedrontando as suas vítimas, ameaçando-as e à sua família, porque as penas que lhes foram aplicadas só deixam de  ficar suspensas quando decidem matá-las.

Ainda hoje recordo o pânico em que viviam tantas mulheres, que ouvi em Setúbal, Almada ou Lisboa, sem saberem o que fazer, pois que se ficassem, continuariam a ser espancadas, violadas, humilhadas, seviciadas, mas se os deixassem, tinham a certeza que iriam ser mortas. E eu que com vinte e poucos anos pensava que tudo se resolveria se elas se separassem do facínora, passei a achar que essa tinha de ser uma decisão delas, mas que sobretudo tinha de haver meios para que elas pudessem sair em segurança.

Parece que ainda estou a ouvi-las, cheias de medo, a contarem-me coisas que ainda hoje me causam sofrimento psíquico a mim.

É por causa dessa experiência profissional e também pela reflexão que foi quase sempre conjunta em ONG de apoio a mulheres e a crianças que considero inaceitável o recurso sistemático ao regime da suspensão da execução das penas, que o atual sistema acaba por privilegiar, uma vez que não coloca qualquer obstáculo à sua aplicação.

Bastará lembrarmo-nos do abuso que se fez da aplicação da figura do crime continuado para punir abusos sexuais de crianças e adolescentes para concluirmos que o legislador tem o especial dever de prever esta desconsideração das vítimas, sobretudo se forem mulheres, crianças e mais ainda se forem pobres e não estiverem acompanhadas por advogado.

A Lei deveria, em meu entender, dificultar a suspensão da execução da pena, porque o crime de violência doméstica se pratica, quase sempre ao longo de vários anos e esta prática reiterada é a maior parte das vezes facilitada pela natureza do crime que é intrafamiliar e que por isso ocorre sem testemunhas externas, sendo certo que a vítima vai escondendo, primeiro por vergonha  e depois por medo.

Quando há quarenta anos defendemos que o crime de maus tratos conjugais deveria manter a sua natureza pública, batalha que perdemos e só viríamos a reganhar em Março de 2000,  as razões que apontámos permanecem inalteráveis: trata-se de crime muito frequente, que viola em elevado grau a vida em sociedade, pois que viola o direito fundamental à integridade pessoal. Mas são diversos os bens jurídicos violados e não apenas a integridade física. Na verdade, este crime, além de atentar contra a integridade física  e psíquica da mulher, contra a sua dignidade, põe igualmente em causa a estabilidade emocional e o desenvolvimento integral dos filhos, se os houver, constrange as vítimas, condicionando o seu comportamento e revela-se contra a harmonia da vida familiar, desrespeitando valores importantes como a proteção e a segurança devida aos filhos.  Tudo razões que reclamam uma maior censurabilidade.

Quanto à já detetada ausência de compatibilização das medidas de coação tomadas no âmbito do processo penal com as decisões dos Tribunais de Família, deveria pelo menos mostrar-se abertura para a solução já preconizada da criação de Tribunais Mistos, pelo menos a título experimental, através de Tribunais piloto.

Creio que não bastará a repetição do apelo para a articulação. Já ouço estes apelos há décadas. Quer-me parecer que seria mais adequada a previsão de uma norma de prevalência que estabelecesse que em caso de eventuais decisões incompatíveis, prevalecerá a decisão tomada no âmbito do processo penal, visto que, sendo este o que aprecia a violação de direitos fundamentais, e em obediência até ao princípio da adesão em processo penal, está em melhores condições para tanto.

Sabemos hoje que é necessário outro tipo de medidas, designadamente com vista a garantir que são respeitados prazos de urgência. Lembro-me bem que uma proposta semelhante àquela que agora reuniu consenso foi olhada com comentários jocosos há 20 anos. A Procuradora-Geral da República saudou essa ideia, mas será suficiente?

Outra medida que se impõe, diz respeito à formação dos profissionais, com particular atenção para a formação específica de magistrados, mas aqui creio que há consenso e os Protocolos anunciados pela Secretária de Estado Rosa Monteiro com o Centro de Estudos Judiciários vão no bom caminho.

Importante também valorizar a recuperação psicológica das vítimas, não apenas criando estruturas no Sistema Nacional de Saúde, mas também ajudando as ONG que se mostrem disponíveis para essa atividade tão necessária.

Em suma, mostrar-se-ia aconselhável uma ponderação com espírito aberto, despida de todos os preconceitos, por forma a optar pelas soluções mais justas.  Será que vamos conseguir? Ou vamos continuar a ignorar o sofrimento quotidiano das centenas de mulheres que são vítimas de tratamentos cruéis nas suas casas e a ver pessoas que só ficam incomodadas ciclicamente quando morrem as mulheres que o silêncio de toda a vida tornou invisíveis?

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