A Criança sujeito de direito e a sua dignidade

A propósito destes temas, e com a enorme vantagem de ser mais atual, lembrei-me de uma entrevista que dei em Abril de 2008 à Revista “Educare”.

Acho que também terá interesse lembrar esta entrevista, tanto mais que, com a Revisão de 2007, houve alterações significativas no Código Penal, no que respeita à consagração da natureza pública de quase todos os crimes sexuais contra crianças, o que teve consequências muito importantes no regime da prescrição. Desde logo, a questão da extinção do direito de queixa, deixou de se colocar, visto que os crimes deixaram de depender de queixa, e, por outro lado, o prazo de prescrição do procedimento criminal foi consideravelmente alargado.

Esta revisão, que resultou de um trabalho notável da Comissão presidida pelo Dr. Rui Pereira, viria a ficar com uma mácula relativa à previsão do Crime continuado, de que falaremos noutra ocasião, mas que sabemos não ter sido proposta pela Comissão de Revisão, visto que foi introduzida no Parlamento.

Essa norma, que suscitou numerosos e pungentes protestos das ONG de Direitos Humanos, designadamente a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e Instituto de Apoio à Criança, viria a ser alterada em 2010, na sequência de um compromisso assumido pelo Ministro da Justiça de então Dr. Alberto Martins, que foi interpelado pela Drª Manuela Eanes na Conferência sobre Crianças Desaparecidas e Exploradas Sexualmente, que teve lugar  em 25 de Maio de 2010, confrontando-o com as injustiças decorrentes da sua aplicação, visto que era a dignidade da pessoa humana que estava em causa.

Entrevista:

A ex-presidente da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco garante que hoje há mais e melhores instrumentos para punir crimes contra menores, mas que ainda há um caminho a percorrer para alcançar a desejável tolerância zero.

A comunidade educativa tem um papel fundamental na denúncia de casos de maus-tratos. Dulce Rocha, que assumiu a presidência da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco entre 2003 e 2005, atual presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança (IAC), revela que têm sido dados passos importantes nas matérias que envolvem menores, mas admite que há questões que merecem um olhar mais atento.

A responsável lamenta que a impunidade continue a prevalecer. Mesmo assim, Dulce Rocha sublinha que a sociedade está mais desperta. “Quer-me parecer que há já consciência de que a pobreza é um fator de risco”, exemplifica. Na sua opinião, a formação nesta área, sobretudo dos magistrados, é imprescindível para que os diagnósticos sejam mais corretos e as decisões ajustadas.

Dulce Rocha é magistrada do Ministério Público desde 1981. Em 1991, inicia funções como curadora de menores no Tribunal de Menores de Lisboa. Entre 1996 e 1999, coordena a Comissão Nacional dos Direitos da Criança, que elaborou o relatório sobre a aplicação da convenção em Portugal. Em outubro de 2001, integra a delegação portuguesa enviada ao Comité dos Direitos da Criança em Genebra e, em junho de 2003, é nomeada pelo Procurador-Geral da República para integrar um grupo de trabalho que, a nível europeu, investigou os abusos sexuais de crianças. Em maio de 2003, é nomeada para membro do Conselho Técnico e Científico da Casa Pia.

EDUCARE.PT: Defendeu o alargamento do conceito de perigo na lei de proteção de crianças e jovens. Um conceito que possa funcionar preventivamente. Está tudo igual ou têm sido dados passos nesse sentido?
Dulce Rocha: Ainda não foi possível esse alargamento, mas tenho muita esperança de que o Parlamento aceite uma proposta do Instituto de Apoio à Criança (IAC) que, justamente, defende um conceito mais alargado de conteúdo preventivo, na medida em que conseguirá evitar que crianças em situações de perigo sejam efetivamente vitimadas.

Refiro-me àqueles casos em que, não tendo havido exercício da função parental, outrem se substituiu aos pais nas suas responsabilidades quotidianas de cuidado, e em que se desenvolveram relações psicológicas profundas entre a criança e essas pessoas que são as suas figuras de vinculação e de referência.

O IAC preconiza a inclusão dessas situações na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, por forma a prevenir gravíssimos danos psicológicos na criança, caso seja decidida a rutura desses laços afetivos no âmbito de uma ação de regulação do exercício do poder paternal, por considerar não ser esta a ação própria em casos de não exercício prolongado das responsabilidades parentais. A ação de promoção e proteção mostra-se mais adequada, sendo urgente a consagração legal expressa do direito da criança à preservação das suas ligações psicológicas profundas.

E: Há impunidade em casos de maus-tratos e abusos sexuais de crianças? O que pode ser feito para alterar a situação? Os crimes contra menores só prescreverem quando as vítimas tiveram 18 anos poderá ser uma das soluções?
DR: Lamentavelmente, é minha convicção que a impunidade continua a ser a regra, embora seja notória uma maior consciencialização da comunidade, que cada vez denuncia mais casos. Houve porém uma evolução muito positiva, visto que, ao contrário do que sucedia há bem pouco tempo, a maioria dos crimes contra crianças tem agora natureza pública, com um prazo de prescrição bastante mais longo, o que significa que o nosso legislador passou decididamente a considerar de interesse público o bem-estar das crianças. A natureza semipública destes crimes indiciava uma inadmissível indiferença perante o sofrimento das crianças, que ficavam inteiramente sozinhas quando o agressor fosse o pai ou a mãe.

Por outro lado, a exigibilidade da queixa, quando a vítima fosse uma criança, conduzia a uma situação extraordinária, que era a de permitir a extinção do direito de queixa aos dezasseis anos e meio em casos gravíssimos de abusos sexuais prolongados. Creio que hoje temos mais e melhores instrumentos para punir estes crimes, embora ainda estejamos longe da tolerância zero que desejamos.

E: O que tem faltado para que os direitos das crianças tenham o lugar que merecem na Constituição portuguesa, uma vez que não entram no artigo que define as obrigações fundamentais do Estado?
DR: O reconhecimento da criança como sujeito de direito e de direitos é muito recente, pelo que, na prática, e designadamente a nível das decisões administrativas e judiciárias, constatamos que os direitos dos adultos continuam a ter um valor superior. Por vezes, sem se darem conta, os nossos decisores e também os nossos deputados desconsideram a criança, não valorizando, da mesma forma, a sua vontade, os seus sentimentos, as suas emoções, do que é exemplo a exclusão da sua voz.

Tem havido, por isso, não só em Portugal mas no mundo inteiro, um movimento no sentido de ouvir a criança, particularmente desde a aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança, e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem proferido decisões históricas sobre essa matéria, o que é bem significativo do que ainda há a fazer.

Quanto ao artigo 9.º da Constituição da República, na próxima revisão constitucional, estou convencida de que integrará essa alínea tão necessária que diga caber ao Estado, como tarefa fundamental, a proteção da criança.

E: A especialização dos magistrados na área dos direitos da criança continua a ser uma miragem?
DR: Ainda não temos especialização de magistrados. Nem temos ainda sequer a cadeira de Direitos da Criança nos curricula da formação inicial das faculdades de Direito, mas temos de reconhecer que estamos bem melhor do que há uns anos. Tem havido um esforço por parte de alguns docentes universitários, no sentido de organizarem cursos de pós-graduação sobre Direitos da Criança, que têm sido muito interessantes e com elevada frequência. Também aqui será a progressiva consciencialização da importância dos conhecimentos científicos que conduzirá à assunção das aquisições cognitivas como uma necessidade e uma exigência do século XXI.

E: Os portugueses têm, de facto, noção das situações que são consideradas de risco para os menores? Por exemplo, que viver em habitações degradadas ou faltar consecutivamente à escola são também fatores que entram nesse conceito?
DR: Creio que sim. Quer-me parecer que há já consciência de que a pobreza é um fator de risco, que será tanto mais relevante quanto for associado a outros fatores, de cuja conjugação pode resultar o perigo concreto para uma criança.

E: O papel e a intervenção das comissões têm sido, em alguns casos, colocados em causa. Como analisa as críticas quando algo corre mal?
DR: Depende muito do caso concreto. Por vezes, podemos assistir a críticas injustas, mas poderá também ser um sinal de que a comunidade está mais exigente para com as suas estruturas de decisão, particularmente quando estamos perante situações dramáticas de crianças que perdem a vida depois de alguém ter denunciado maus-tratos, por exemplo. É por isso que é fundamental a formação. Quanto mais soubermos, mais facilidade haverá em diagnosticar corretamente e tomar decisões ajustadas e atempadas, que evitem o prolongamento do sofrimento das crianças.

E: Falta mais poder para que as comissões possam atuar atempadamente? Em tempos, chamou a atenção para o facto de essas estruturas só poderem atuar caso os pais consintam…
DR: O consentimento dos pais é necessário, por imposição constitucional. Só os tribunais podem agir sem consentimento dos pais. Por isso, entendo que há situações que deveriam manter-se sob reserva dos tribunais e que são as que consubstanciem a violação de direitos fundamentais. Entendo que deve ser a natureza das ações praticadas que deve determinar a entidade competente para decidir e não a questão do consentimento, porque isso é, afinal, colocar frequentemente – sempre que seja o pai ou a mãe – o agressor a decidir sobre qual a entidade que vai apreciar o caso, o que é perverso, sob o meu ponto de vista. Será dar poder a quem utilizou abusivamente o poder paternal, visto que este lhe foi dado no interesse do filho. Ou seja, nos casos mais sérios de violação dos direitos fundamentais (maus-tratos e abuso sexual pelos pais), que se traduzem em enormes conflitos de interesses entre a criança e o adulto, os tribunais, que são os órgãos de soberania que a civilização criou para decidir os conflitos graves, não estão presentes. Creio ser indubitável que esta é uma demonstração de que há efetivamente uma desvalorização da criança, visto que, apesar do movimento atual de desjudicialização, não se admite, por exemplo, que um divórcio litigioso seja apreciado pelo conservador do Registo Civil.

E: Defender a prevalência da relação afetiva sobre a biológica na atribuição das custódias é um critério objetivo ou subjetivo?
DR: Atualmente, já não podemos opor a relação afetiva à biológica, porque a biologia integra também os afetos. Será por isso mais rigoroso falar da oposição entre relação afetiva e genética. É, sem dúvida, um critério objetivo, fundado nos conhecimentos científicos atuais. Aliás, o próprio TEDH tem dito que a relação biológica só releva para efeitos de proteção do direito à família se for acompanhada das responsabilidades financeiras e também das responsabilidades quotidianas de cuidado e afeto com a criança, que são imprescindíveis para o seu desenvolvimento equilibrado e saudável.

E: Que papel deve ter a comunidade educativa nas questões dos riscos, até pela proximidade que mantém com as crianças?
DR: A comunidade educativa desempenha um papel fundamental, visto que está presente diariamente na vida da criança, o que lhe dá uma responsabilidade muito grande no seu desenvolvimento.

E: Faltam estruturas ou apoios nos estabelecimentos de ensino para que os casos sejam sinalizados atempadamente?
DR: O IAC tem entendido que a mediação escolar é essencial para sinalizar não só casos de maus-tratos que devem ser participados às comissões de proteção, mas também para trabalhar casos de absentismo escolar e até de violência entre pares. Para o efeito, o IAC tem incentivado a criação de gabinetes de apoio ao aluno e à família em todo o país.

E: Como analisa a mediatização dos casos mais complexos e que envolvem crianças? Há vantagens ou desvantagens?
DR: Poderá haver desvantagens derivadas do excesso de exibição de determinado caso em concreto e do tratamento desadequado devido à busca de sensacionalismo da notícia. Mas creio que as vantagens da denúncia superam largamente as desvantagens, pois o que de pior pode haver é a indiferença motivada pelo silêncio.

E: Essa mediatização pode contribuir para que haja mais denúncias?
DR: Não tenho dúvidas de que a notícia dos casos facilita as denúncias, quer de terceiros, quer das próprias vítimas.

E: Portugal tem uma rede de instituições de acolhimento de crianças eficaz?
DR: Tem-se feito um esforço grande, nos últimos anos, para melhorar o acolhimento, humanizando-o e tornando-o mais seguro, designadamente através de formação adequada, com vista a retirar-lhe definitivamente algum cariz tipo asilar que ainda subsistia. Creio que poderemos dizer, também aqui, que houve uma evolução muito positiva nesta área, mas claro que podemos sempre aperfeiçoar a qualidade do acolhimento. E as instituições têm sido extraordinárias porque são, muitas vezes, as primeiras a querer prestar cada vez melhores serviços e a mostrarem-se disponíveis para mudar, mostrando saber que a ética do cuidar é sobretudo uma responsabilidade.

Fonte: Revista “Educare”, Abril 2008

Um comentário sobre “A Criança sujeito de direito e a sua dignidade

  1. Boa entrevista prof. Muito realista. De facto a probreza e exclusão social, devido às influências dos pares, são hoje em dia os principais factores de risco das crianças. Mas estes factores estão inerentes ao contexto social da nossa sociedade. De facto são os riscos dum sistema…. já implantado pelas diferentes políticas. Cabe-nos a nós criar legislação que defenda estes factores, o que não é fácil. Mas não é impossivel. Boa sorte.

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