Hoje é o Dia Europeu das Vítimas de Crimes

Hoje é o dia Europeu das Vítimas de Crimes.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima organizou um seminário sobre a violência sexual exercida contra as crianças, talvez um dos maiores tabus do nosso tempo.

Os números continuam a surpreender-nos pela sua dimensão. Mas há algo que já sabemos há muito pela observação, pelas notícias, pelos estudos: Em todo o mundo, as meninas são as que sofrem agressões sexuais em maior número e são também muitas as que são assassinadas às mãos dos violadores.

Soubémos há dias que tinha sido recusado o pedido de liberdade condicional para Marc Dutroux, o predador sexual condenado pelo sequestro e pela violação de seis meninas, e pelo homicídio de duas delas: Melissa e Julie, raptadas aos oito anos. O pai de Julie, Jean Denis Lejeune que fundou a Child Focus, Organização Não-Governamental belga que apoiou a criação da Federação Europeia das Crianças Desaparecidas e Exploradas Sexualmente, hoje  Missing Children Europe (MCE), pediu recentemente uma alteração à lei da liberdade condicional para casos de crimes desta natureza.

O IAC é membro fundador da MCE e está inteiramente de acordo com essa norma de  excepção, pois considera estes crimes da maior gravidade por atentarem contra a dignidade humana, a integridade pessoal e a própria vida.

Os crimes sexuais, e em especial os crimes sexuais contra crianças, têm merecido constantes alterações na redacção das respectivas  previsões legais, o que revela bem as sucessivas mudanças quanto ao desvalor das condutas criminosas e à censurabilidade dominante.

A consagração dos direitos da criança é um assunto recente e ainda em construção.

Lloyd De Mause dizia que “A história da Infância é um pesadelo do qual só agora começámos a  despertar”.

Há quatro anos, por ocasião do Dia Europeu contra as Vítimas de crime, escrevi um texto, que agora publico:

 Os 20 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança

por ocasião do Dia Europeu da Vítima de Crime.

Decerto não merecerá oposição a afirmação de que a criança vítima de crime deve ser particularmente protegida.

Todavia, percorre-nos um sentimento de insatisfação se nos lembrarmos de todas as situações em que observamos que muitas vezes estão indefesas e vulneráveis perante os criminosos.

Por isso, a decisão do Forum Europeu das Associações de Apoio às Vítimas de assinalar o dia das vítimas de crimes é tão importante. E achei que poderíamos tentar perceber se a situação da criança vítima evoluiu como gostaríamos e que deveríamos conjugar essa data com a celebração de outra efeméride.

No ano em que passam 20 anos sobre a aprovação da Convenção dedicada à Criança, que bom seria se houvesse vontade de avaliar medidas que foram tomadas e que sabemos não terem resultado inteiramente.

Decorridos oito anos sobre a reforma introduzida na legislação de Protecção e Educativa, houve progressos? Os objectivos que o legislador se propôs, foram alcançados?

A desjudicialização da protecção trouxe benefícios?

Há menos crianças maltratadas e negligenciadas? Há diagnósticos mais adequados e a intervenção é mais pronta e eficaz? Será que o modelo instituído está a corresponder ao esperado? E será que todas as medidas adoptadas estão correctas?

Merecem-me sérias reservas algumas delas.

Por exemplo, continuo a discordar que se tenham incluído as situações de maus tratos e abusos sexuais praticados pelos pais nas competências das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens.  Considero esta divergência uma questão de princípio.

É que, estamos perante a violação de direitos fundamentais, matérias que, na minha perspectiva, devem ser sempre da competência do Tribunal.

Foi o progresso do Direito no domínio dos Direitos Fundamentais que conduziu, por exemplo, à consagração da natureza pública destes crimes, cujo procedimento deixou de depender de queixa do ofendido, porque aqui, sendo o ofendido menor de dezasseis anos, a queixa devia ser apresentada pelos pais, que eram os agressores.

Por isso, nestes casos, constatava-se que as crianças vítimas destes crimes ficavam inteiramente sozinhas, visto que os agressores eram aqueles a quem a lei, que, indiferente à realidade, romantizava as relações familiares, particularmente as relações pais-filhos, atribuía o direito de queixa.

A dimensão dos crimes sexuais contra crianças, nas suas múltiplas formas, era, até há bem pouco tempo inteiramente desconhecida. Pensava-se que tinha uma expressão quase insignificante nas sociedades civilizadas. O muro de silêncio que se erguia e que ainda hoje permanece, resultava de um conjunto de factores. Por um lado, existe uma dificuldade importante por parte das pessoas que condenam esses comportamentos em aceitar que haja outras pessoas tão diferentes delas. Por outro lado, as vítimas calam essas experiências dolorosas por medo, vergonha e desconforto, duvidando sempre do impacto da revelação. As perguntas: “Será que vão acreditar em mim? Será que vão achar que também tenho parte da culpa?”, são típicas, porque quase sempre sugeridas pelos agressores.

Mas a realidade e o conhecimento dela e a troca de informação permitida pelos novos meios de comunicação vieram chamar a atenção dos estudiosos que iniciaram uma série de pesquisas. Os números encontrados em diversos estudos, que tiveram por base inquéritos de vitimação em diversos países e bem assim os ficheiros de pornografia infantil com inúmeras imagens obtidas a partir de crianças com idades cada vez mais baixas, foram avassaladores.

E assim, iniciou-se um movimento nos Estados Unidos, Canadá e em muitos Países europeus no sentido de punir com maior severidade crimes desta natureza, ao mesmo tempo que se exigia que não dependesse de queixa o procedimento criminal.

A União Europeia emitiu recomendações e fez importantes Directivas sobre esta matéria. Em Portugal também se fizeram progressos, autonomizaram-se condutas criminosas contra as crianças, aumentou-se substancialmente o prazo de prescrição, na última revisão do Código Penal, mas, ao mesmo tempo, a previsão da figura do crime continuado neste tipo de crime constitui uma regressão que significa uma desvalorização da vítima que é violada reiteradamente, na medida em que se ficciona um menor sofrimento nas agressões múltiplas.

A previsão da possibilidade de aplicação desta figura é, em nosso entender uma desvalorização da vítima de abuso, visto que passa a não ser vista com a mesma dignidade que tinha antes de ter sido praticado o crime.

Isto significa que não se retiraram todos os ensinamentos do conhecimento, parecendo até que se pretende negar a realidade.

Mas também no domínio da protecção parece haver uma espécie de manto, como se, ao escondê-la, diminuísse o número de crianças vítimas de crimes sexuais.

Ao não excepcionar a competência das Comissões de Protecção nestes casos, objectivamente, desvaloriza-se a sua extrema gravidade, além de que não é coerente que no domínio do Direito Penal, se reconheça o desvalor de uma conduta, considerando-a tão grave que torna desnecessária a queixa e que no domínio da protecção à criança vítima de crime se menorize essa gravidade.

Tanto mais que o Direito Penal é afinal o ramo privilegiado do Direito destinado a proteger as vítimas através da aplicação de uma pena a quem viola os direitos tutelados pelas normas.

Por outro lado, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, com a sua composição interdisciplinar e interinstitucional, visa obter o acordo de promoção, o que nestes casos de grande conflito não me parece dever ser o objectivo da intervenção.

Acresce que, se para a intervenção da Comissão, é necessário o consentimento dos pais, dificilmente se entende que, nestes casos, dependa da vontade dos agressores a decisão sobre a entidade que vai analisar a situação, o que aliás tem algo de perverso.

Sobretudo, o facto de não serem reservadas à competência dos Tribunais estas matérias, traduz, em meu entender, uma concepção que desvaloriza a criança vítima de crimes, na medida em que não reconhece o seu direito a ver decidido o seu destino por um órgão de soberania, com a autoridade que acompanha as suas decisões.

É que, não obstante as vantagens das estruturas administrativas mediadoras, a regra é no sentido de que quando há grandes conflitos entre adultos, há reserva de competência dos Tribunais, pelo que não há razão para ser diferente quando estamos perante um conflito de grandes dimensões entre um adulto e uma criança.

Entendo, pois, que deveria ser a natureza da situação a determinar qual a entidade competente para decidir. Se tal situação, legitimadora da intervenção do Estado na família, consubstanciasse uma acção se traduzisse na prática de um crime, então deveria ser o Tribunal a intervir e não atribuir ao agressor o poder de decisão sobre esta matéria.

Por outro lado, reconhecendo-se hoje a importância das ligações psicológicas na estruturação da personalidade, não parece razoável que continue a estar ausente, na Lei de protecção, o direito da criança à preservação das suas relações afectivas profundas.

Quando assistimos a uma progressiva perplexidade perante atitudes chocantes de jovens e adultos, pergunto-me muitas vezes se a falta de ressonância afectiva que demonstram, não estará relacionada com as múltiplas decisões erradas que foram sendo aplicadas na sua infância. Quantas vezes tais decisões se traduziram no desrespeito de direitos que lhe eram caros, designadamente pela indiferença quanto à dor provocada pelas separações impostas, por incapacidade de compreender o profundo sofrimento causado pelas sucessivas descontinuidades nas suas relações afectivas?

O Instituto de Apoio à Criança elaborou um documento em que participaram ilustres personalidades ligadas à defesa dos direitos da criança, que entregou na Assembleia da República em Abril do ano passado, e que procurou reflectir sobre estes aspectos.

Porém, embora tenha contado com a adesão de mais de trezentas personalidades, que o subscreveram, não houve notícia de que o Parlamento tenha entendido urgente a sua discussão.

Mas há outras medidas que me merecem reservas.

Entre elas, está a proclamada necessidade de fazer duas leis distintas como forma de separar as crianças vítimas de maus tratos e abandono daquelas outras cujo comportamento se traduz na prática de factos considerados pela lei penal como crime.

Sempre disse que não era a circunstância de haver duas leis distintas que determinava essa separação, que aliás me parece essencial para os fins que as normas pretendem prosseguir, mas sim a natureza das medidas aplicadas a cada um dos tipos de situações.

Obviamente que ninguém imaginará que os Tribunais, na vigência da anterior Lei Tutelar de Menores, se permitiam aplicar uma medida de admoestação à criança vítima de um crime de maus tratos ou que decidissem o seu internamento em estabelecimento com fins de reinserção social, antes chamados institutos de reeducação e hoje centros educativos.

A pouca eficácia das medidas está quase sempre na carência das respostas sociais e na dificuldade de intervenção precoce e atempada, e não na separação de leis que bem podiam estar consagradas num mesmo Código ou Estatuto da Criança e do Adolescente como sucede noutros países desenvolvidos, que decerto não enviarão para um estabelecimento com as características dos nossos centros educativos uma criança vítima de maus tratos ou de abuso sexual.

Aliás, o que constatei, durante a minha permanência no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, já após a entrada em vigor da Reforma, foi justamente algo que decerto não terá sido desejado e que consiste na colocação de adolescentes que já iniciaram percurso criminoso em instituições da Segurança social onde estão igualmente acolhidas crianças vítimas de maus tratos.

Na verdade, o facto de ser exigível a queixa do ofendido para dar início a um processo tutelar educativo teve como consequência a possibilidade de reiteração da prática de crimes pelos adolescentes, sem que houvesse qualquer providência por parte do Tribunal no sentido da sua responsabilização pelos factos ilícitos que cometera, desde que se tratasse de crimes semi-públicos.

Ora, a maioria dos crimes praticados pelos adolescentes são os furtos em grandes superfícies comerciais, cuja natureza semi-pública impede o MºPº de iniciar o procedimento tutelar educativo, se não houver queixa.

Muitas vezes, os administradores dos Centros Comerciais abstêm-se de apresentar as queixas, para evitarem os procedimentos que acabam por não ter quaisquer vantagens económicas e se traduzem em formalidades e em deslocações às esquadras policiais e aos Tribunais dos funcionários desses estabelecimentos que podem perder horas para prestarem os seus depoimentos.

Não raramente, esses adolescentes, que não têm uma estrutura familiar contentora, têm já processo de promoção e protecção e vivem em instituições de acolhimento para onde voltam após tais práticas ilícitas, sucessivamente.

É por isso que são diminutas as medidas de admoestação ou de acompanhamento educativo, por exemplo, que poderiam ter um efeito dissuasor e pedagógico, sobretudo se aplicadas logo que seja conhecido o percurso marginal do adolescente.

Esperar que esses adolescentes pratiquem um crime grave, de natureza pública, para ser então instaurado um processo tutelar educativo não parece ser a melhor opção.

Aliás, será certamente esta situação que é causa da mais frequente aplicação de medidas de internamento em centro educativo, visto que só tardiamente se iniciou o procedimento tutelar e por factos de tal forma graves, que reclamam medidas mais duras.

Entretanto, as crianças vítimas de violência convivem no quotidiano com esta realidade que necessariamente os influencia e observamos, agora sim, que acolhidos nas mesmas instituições, estão crianças vítimas de violência e crianças que se iniciaram em práticas ilícitas.

Quando se ouvem vozes que ciclicamente exigem seja diminuída a idade da inimputabilidade, penso sempre que não se tentou tudo para evitar a prática de ilícitos graves por adolescentes que estavam já no sistema de protecção, muitas vezes em acolhimento institucional, por não terem uma família devidamente cuidadora e que mais uma vez hão-de entrar no sistema tutelar educativo pela prática de factos tão graves que não haverá forma de obviar ao seu internamento em centro educativo.

Os efeitos criminógenos do encarceramento não são evitados desta forma. Não será de rejeitar esta aparente inevitabilidade?

Estou convicta que esta não terá sido a ideia do legislador e tenho a certeza que acabará por decidir-se mudar este estado de coisas, porque a educação para o direito tem de depender do facto ilícito praticado e não da vontade do ofendido.

E que dizer do menor valor que é atribuído aos depoimentos das crianças? São muitas as situações que revelam que ainda são desconsideradas as declarações que prestam.

Por exemplo, nos crimes de abuso sexual temos tido conhecimento de situações em que mesmo após ter sido deduzida acusação pública, não há a devida comunicação ao processo de regulação do exercício do poder paternal e a criança continua obrigada a conviver com os pais acusados da prática do crime. Como admitir que apesar da constituição de arguido, acusado pelo Ministério Público, não se decide a suspensão das visitas da criança aos pais agressores?

Neste caso, não faz sentido esperar pelo fim do julgamento que pode durar anos.

Não optar por medida cautelar de suspensão das visitas afigura-se-me um desrespeito para com a criança que se vê refém do seu testemunho, aterrorizada porque é obrigada a conviver com o agressor e desiludida porque afinal ousou denunciar o crime e não se verificou a consequência que esperava. Só por grande desvalorização do depoimento da criança é possível manter este procedimento.

A negação da enorme dimensão destes crimes é um fenómeno que tem por base uma concepção que não aceita a realidade, que se recusa a admiti-la, fantasiando a natureza humana, capaz das maiores generosidades, mas também das maiores barbáries.  Crimes desta natureza devem ser tratados com o rigor das ciências sociais e humanas por forma a permitir a verdadeira protecção à criança-vítima.

Não será altura de repensar todo este sistema, que só aparentemente protege?

Sempre assumi como responsabilidade ética contribuir para a reflexão sobre matérias que podem ser incómodas, mas que temos o dever de tratar por forma a minorar o sofrimento das vítimas.

A Convenção sobre os Direitos da Criança consagra o direito das vítimas de crimes de maus tratos e de abuso sexual à sua recuperação psicológica. Creio que ainda não está assegurada essa recuperação. E estou convicta que só quando a justiça for reparadora para a vítima teremos iniciado esse caminho preconizado na Convenção.

Por ocasião do Dia Europeu da Vítima de Crime, é importante chamar a atenção para a criança, indubitavelmente a vítima mais vulnerável cuja voz para ser ouvida exige o clamor dos adultos.

Dulce Rocha

Presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança

Felizmente, logo no ano seguinte, em 2009, foi alterada a norma sobre a aplicação da tese do “crime continuado”, que atentava contra a dignidade humana e ensombrava o excelente trabalho da Comissão de Revisão do Código Penal, em 2007.

Permanecem, porém, as reservas que expus sobre as Leis de Protecção e Tutelar Educativa, e interrogo-me sobre as razões das incongruências de um sistema que deveria promover uma convergência sobre questões essenciais, designadamente sobre a reserva dos Tribunais em matéria de violação de direitos fundamentais.

Valorizar a criança e os seus direitos, exige de nós pensamentos elevados, sem preconceitos e estereótipos que nos obnubilem o espírito.

Querem participar nesta reflexão?

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